VIROU A MÃO

O texto a seguir foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

VIROU A MÃO

Dona Rita, mulher simples, roceira como todos do lugar, amiga da família e que morava não muito distante lá de casa, resolveu, certo dia, ir passar a tarde chuvosa de trela com minha mãe. Sentadas frente a frente, enquanto minha mãe, que não perdia tempo, remendava roupas, dona Rita desfiava casos e mais casos trazidos da vizinhança, notícias de cá e de lá ouvidas do rádio, os comentários mais disparatados acerca disso e daquilo.

— Pois é, Rita, o mundo 'tá mesmo perdido. — ouvi minha mãe concordar com o caso no qual eu nem tinha assuntado.

— E sabe por quê, Dona Benta? Eu escuitei na rádia Aparecida do Norte esses dia, que o mundo 'tá ansim porque já não 'tá mais certinho, como devia, nas mão de Deus Nosso Senhore, que 'tá virando de cabeça pra baixo, e que, quando isso acontecê de vez, o mundo 'tá pertinho de se acabá. Cruiz, credo! E a senhora pode arrepará lá na igreja, dona Benta, que o mundo que o Senhore Bom Jesus traiz na mão já não 'tá bem a prumo memo. A cruzinha já 'tá meio de banda. Pode arrepará! — insistiu dona Rita.

Eu devia ter, nessa época, os meus dez a onze anos e estava desenhando ali perto, de pé, espremido entre o topo da mesa enorme e a parede. Embora criança, eu achei a fé de dona Rita ingênua demais. Ora, onde já se viu!... Acreditar que o globo na mão da estátua estivesse sujeito às malvadezas dos homens. Só pra dona Rita!...

Parei de pintar o desenho que havia feito e olhei pra parede ao lado. Na gravura de um calendário, quase ao alcance de minhas mãos, estava representado o Menino Jesus com um carneirinho e o globo terrestre numa das mãos. Veio-me a tentação de apagar a cruzinha de cima e desenhar outra embaixo do globo, e depois ir mostrar... “Não, não vai dá certo”, pensei. Eu só dispunha de lápis de cor... Não tinha como retocar sem deixar vestígio, e ia acabar me sobrando uns bons tabefes de minha mãe. Por prudência, desisti.

No mesmo instante, porém, me lembrei de que a dita estátua do Senhor Bom Jesus, à qual dona Rita se referiu, tinha as duas mãos destacáveis dos braços, detalhe este desconhecido pela maioria das pessoas. Continuei a pintar meu desenho, mas com a mente parafusando mais uma de minhas travessuras, que não foram poucas.

Como me foi difícil esperar que o fim-de-semana chegasse!

Era minha irmã quem varria a capelinha e enfeitava os altares todas as tardes de sábado, pras rezas de domingo, e eu a ajudava muitas vezes, levantando os genuflexórios dos bancos, buscando água pros vasos, tirando a poeira, numa coisa e noutra.

Naquele sábado, mal ela deixou a capelinha depois do serviço pronto, eu pulei detrás do muro do cemitério, onde eu me escondera, bem próximo à saída lateral da capela, e num já, entrei e tranquei a porta por dentro. Afastei a toalha do altar, pra não sujá-la, limpei os pés num pano de chão, a fim de não deixar marcas que me denunciassem, e subi pra mesa com o auxílio de uma cadeira. Como não alcançasse ainda, afastei alguns vasos dos degraus do altar enorme, e subi até ficar quase no mesmo nível do santo. Ao inverter a mão da estátua, não houve jeito de fazê-la parar no encaixe e quase que ela me escapa da mão. Que susto! Quis desistir, recolocando-a na posição anterior. Daí, me veio a ideia de trocar a mão esquerda pela direita... Deu certo.

Saí sorrateiro, como tinha entrado, sem mesmo olhar pra traquinagem feita, e instantes depois, já estava nos meus afazeres diários dos fins de tarde: pôr ração nos cochos, prender as vacas pra ordenha e dar trato aos porcos de engorda, pois a noite se avizinhava.

Na manhã seguinte, meu primeiro pensamento foi de arrependimento. Quis ir desfazer a molecagem, mas fiquei com medo de que me descobrissem. "Ah, ninguém vai ficar sabendo que fui eu", tentei convencer-me, mas a dúvida e o medo aumentavam. Pensei não ir às rezas... Seria pior; minha mãe iria descobrir e me puxaria as orelhas depois, sem querer saber de explicações. O jeito era mesmo ir. E fui.

Embora fingisse a maior inocência do mundo, ao pôr os olhos na estátua do Senhor Bom Jesus, quase explodi numa gargalhada. O santo parecia estar brincando de jogar bola de borracha, daquelas bem azuis que as crianças dos tempos idos ganhavam de presente no natal.

As rezas começaram sem novidade. Ninguém parecia notar no aleijão das mãos da estátua, que em vez de terem os polegares do lado certo, tinham-nos ao contrário. Cheguei a sentir até uma pontinha de decepção pelo insucesso de minha proeza.

De repente, porém, se ouviu um grito. Todo mundo olhou, inclusive eu. Dona Rita caía desmaiada e era acudida pela mulherada próxima, num reboliço mudo a fim de não perturbar o andamento das rezas. Acabaram por levá-la pra fora. Enquanto isso, a cantoria, lá em cima no coro, continuava imperturbável e alheia ao que se passava cá embaixo.

Terminadas as orações dentro da capelinha, seguiu-se, lá fora, a reza costumeira ao pé da santa-cruz, e pouco depois, o povo se dispersava, levando consigo os comentários e suposições acerca do que teria acontecido à pobre dona Rita. Enquanto isso, a capelinha foi fechada, e eu, sem pesar a temeridade, fui de fininho desfazer minha molecagem, não deixando de pedir perdão ao santo pelo meu atrevimento.

Já em casa pouco depois, chegavam as primeiras notícias de dona Rita.

— A pobrezinha teve uma crise de loucura. Onde já se viu a estátua do Senhor Bom Jesus tê virado a mão!?

— 'Tá doida mesmo a pobrezinha!

— E ela continua teimando que viu, que viu, que viu o santo de mão virada, e agora ninguém tira da cabeça dela, que o mundo vai se acabá.

— Bamo lá na igreja olhá. Sabe lá se... — propôs um, já inclinado a acreditar.

— Quem acredita numa bobage dessa é tão doido quanto ela. Ora, ora, ora, onde já se viu! ... Só se argum atrevido subiu lá e feiz a safadeza de mexê na mão do santo. Mas tem que sê arguém muito do ordinário, pra fazê um serviço porco desse! — sentenciou meu pai, que também estivera nas rezas.

Fingindo desenhar no lugar costumeiro, na saleta ao fundo, eu me encolhi todo ao ouvi-lo. O adjetivo ordinário, na boca de meu pai, tinha o pior significado pra mim. Era a mais feia qualificação que se poderia atribuir a uma pessoa. Senti remorso pelo que tinha feito e prometi, na hora, rezar cinquenta padres-nossos e cinquenta ave-marias, pra que ninguém viesse a descobrir meu pecado tão feio de ter feito o santo virar a mão. E deu certo. Sinal de que o Senhor Bom Jesus me perdoou a molecagem que somente agora, sessenta e tantos anos depois, estou contando.