_Assim como me deu...

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– Ai, meus Deus! Derramei o leite, droga!

Quermezé era alquimista moderno, homem cheio de boas intenções, e entregador de leite em domicílio da fazenda Boi e Tripa, uma das maiores da Região do Cariri. Sonho do cabra: conhecer as praias da capital.

“Queria era que esse sol abençoado que me bronzeia aqui na fazenda me derretesse o miolo da cabeça lá nas praias da capital!” – resmungava o diarista, retirando o boné e olhando para o céu. “Mas de outra forma, sem essa inhaca[1] de gambá do Toinzé perto de mim. Eita que homem pra feder do cão! Queria essa benção, careço demais disso! Rodeado de lindas mulheres passeando pela orla, desfilando aqueles corpos atraentes em tirinhas de biquínis que não cabem nem na ponta do dedo, mostrando quase a perseguida... Eita que pobre sofre! Como sonhar é dom sem dor nem dó e dá igual pereba, sonho que lambo os beiços!”

Salário minguado. Família pobre. Muitos irmãos... O tempo passa e o sonho resiste, tinhoso, no íntimo de Quermezé.

“Como juntar o maldito dinheiro pra viajar, meu Deus!” – esbravejada, limpando o chão onde o leite se esparramara após a queda do vasilhame. “Preciso completar a disgrama[2] desse leite antes que o patrão desconfie.”

Ao encher o contêiner, completando com água o leite derramado, Quermezé tem um estalo. “E se completar o leite todos os dias com água, aumentando a quantidade, hein?” – pensa em voz alta. “E se o patrãozinho descobre e me põe no olho da rua, hein? Isso não é certo... Ai que tentação da peste! Mulheres no balde pra olhar. Meio mundo de biquínis pequenininhos pra olhar. Sei não, moço, mas vou arriscar esse troço. Está decidido. É isso mesmo, está é mais que decidido.”

E o plano se inicia naquele exato momento, por força maior.

– Vamos, Zé!

– Estou indo patrãozinho!

– Eita que demora da gota!

– É que a manhosa estava era braba hoje. Esses bichos quando se danam nem leite deixa a gente tirar. Ah trabalheira!

– É mesmo... Pior que você tem razão, Zé!

Tudo certinho. Entregas efetuadas. Agora era esperar alguma reclamação.

No dia seguinte, Quermezé fez a contraprova. Não usou o placebo nem burlou as amostras de leite e entregou tudinho sem a água adicional. Nada, nenhuma cara feia das clientes.

Ao anoitecer, entre pensamentos lascivos, Quermezé olhava fixamente o firmamento límpido de estrelas a lhe iluminar as tenebrosas divagações.

– Zé?

– Já estou é aqui, patrãozinho! Vamos que o dia hoje amanheceu lindo, cheio d’água!

– E choveu esta noite? Não me lembro de nada de chuva não, Zé!

– Nada não, patrãozinho. É que tenho dificuldade com as palavras.

– Eita Zé doido!

Eram entregues 100 litros todas as manhãs. Com a artimanha roceira, Quermezé transformava os litros iniciais em 130, abiscoitando, molinho, lucro diário de trinta por cento!

“Água bendita que me realizará o sonho. Água bendita que tanto gosto de beber. Água bendita que deixa o leite mais ‘molinho’ que as patroazinhas gostam tanto e elogiam. Ah água bendita, salgada, onde minhas princesas se banham... Mar imenso de tantos peixes. Mar imenso de tantas princesas. Ah água de Deus! Ah Zé de Deus... E se o patrãozinho descobre, homem? Ah tentação que não passa... Preciso de mais um tiquinho pra comprar a passagem e poder me sustentar lá por dias, sem me afobar...”

Quermezé junta o trocado e avisa que vai viajar.

– Pra onde, Zé?

– “Furtaleza”... Vou avistar o mar!

– Homem, isso de praia é perigoso. Tá pensando que é igual a açude? Água não tem cabelo não, Zé!

– Eu sei, patrãozinho. Os cabelos que quero apreciar na praia são outros que não os meus. Ai que vontade de poder mesmo pegar nos cabelos delas pra saber se realmente existem...

– Mas você num vai ver as muié, Zé?! Que tonteira é essa de pegar pra saber se existem!

Quermezé arruma as malas e viaja para a capital. Durante a viagem sequer espreita as paisagens. Por ele, dormiria e acordaria na capital, de preferência, à beira mar. Dez horas depois chegam à rodoviária. Sem dormir, aproveitando que chegaram às seis horas da manhã, Quermezé vai direto para a Praia do Futuro, no primeiro táxi que encontra.

Chega e contempla a beleza imponente da imensidão azul. Sente a areia da praia a amaciar-lhe os pés. Anda vagarosa e emocionadamente pela orla e decide entrar no mar.

“Que delícia! Que felicidade! Que sonho bom realizado...”.

Quermezé está fora de si, emocionado. As ondas se sucedem e ele entra no mar, descuidadamente, molhando os pés... Os joelhos... De repente, forte onda se aproxima.

“Ai, meu Deus!” – Quermezé tenta correr, mas é atingido.

Com a violência, num interminável vaivém de ondas, ele é batizado pelo mar que o engole. Depois da série de ondas, é expulso do mar, ficando à beira do desespero. Recupera-se do susto e procura o dinheiro das economias. Vasculha os bolsos da frente da bermuda. Rastreia cada um dos dois bolsos detrás. Nada. Olha para o mar, o imenso mar que povoara sonhos, e vê as cédulas boiando. Boiando. Boiando. Tem ímpetos de nadar e buscar o dinheiro, mas as recordações do desespero recente limitam-lhe as ações.

Ele senta, olha a linha do horizonte, e sentencia:

“Ah mar imenso de tantos sonhos e de tanta água. Ah água que me realizou o sonho de estar aqui diante do mar. Mesma água que agora me leva, aos pedaços, o sonho... Ah água maldita! Ah sonho maldito! Ah mulheres lindas que não quero mais ver...”.

Quermezé se levanta, corre para o orelhão mais próximo e faz uma ligação:

– Patrãozinho, a água levou meu sonho embora... Mas tem nada não, água pra frente. Eu voltarei outra vez!

– Está doido, Zé!

O telefone é jogado no ganho. Estrondo. Do outro lado da linha, a confirmação: tu, tu, tu...

(Nijair Araújo)

Crato-CE, 07 de agosto de 2008.

12h16min

[1] s.f. Bras. Pop. Mau cheiro, catinga, bodum, morrinha.

[2] Xingamento variante de desgraça.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 12/03/2012
Reeditado em 12/03/2012
Código do texto: T3550149
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