NOITES DE QUERMESSE - I

NOITES DE QUERMESSE - I

...sim, porque realmente vale a pena recordar as noites de Quermesse. Sem sentimentalismos, sem nostalgia; porque existiram na época certa e durou o tempo exato: nem antes e nem depois, nem menos e nem mais. Existiram naquele preciso momento da nossa indecisão e da nossa procura. Hoje, podemos afirmar com convicção que naquelas noites é que nos definimos e nos encontramos.

Fecho os olhos e me vejo defronte ao Aiwa1. Do outro lado do vidro, nos botões da Desdemona 2, BENJAMIM 3, o Assíduo, auxiliado por aquela montanha peluda devoradora de pizzas, o sempre alegre BRUNO 4. À porta, citando intermináveis e chatíssimas programações ibeemicas, o MAESTRO 5. No banco, JOCA 6 e BABALINA 7 riem de algo que o FOLGADO 8 disse, enquanto o BUDA 9, bocejando e acendendo mais um Luiz XV, chama-os de bichas. Talvez daqui a pouco o ANÃO 10 venha para um alô, e o KAORU 11 também. O FEIZAL 12 e o DOUGLAS 13 por aqui já passaram, assim como os irmãos LAGO 14.

BENJAMIM toca a campainha pela segunda vez. A luz vermelha se acende sobre a porta: “NO AR”. Ao som de “Merci, Chérie”, com a Orquestra de Franck Pourcel, servindo de fundo, falo: “— Na seqüência da Quermesse Musical, ouvimos, com Ray Charles, de Gibson, “I Can’t Stop Loving You”, e com Chico Buarque, de sua autoria, “Olê, Olá”. BENJAMIM sobe um pouco o fundo, depois atenua. Volto a falar: “— A Casa Progresso informa a hora certa. Vai construir, vai reformar? Na Casa Progresso você encontra...” Enquanto falo, fito aqueles amigos através do vidro, e ao mesmo tempo ouço minha própria voz lá fora, vibrando pelas cornetas Sedan e pelas caixas de som, sobressaindo em meio aos ruídos da Quermesse.

E volta à memória os primórdios da Quermesse, lá em 1961, quando tudo começou. Como o tempo passa! Quase que por acaso começamos a fazer o som para a Quermesse. O primeiro estúdio fora no próprio escritório da casa Paroquial, do outro lado da rua, a Orminda. Lá estavam, naquela tarde de um primeiro sábado de maio, outono portanto, o Pe. René 15, o Pe. Marcel 16, o Alesso 17, o Feizal, o Wilson18 e seu irmão Isaltino19, este cuidando da parte técnica. Um amplificador, um toca-discos (conhecido como pick-up), um microfone, um alto-falante tipo corneta, sobre a marquise do prédio da Igreja, todos da marca Sedan.

“... e logo mais, com as coloridas luzes já apagadas e o som desligado, na companhia de alguns desses amigos, estaremos saboreando uma loirinha suarenta, preenchendo com goles lentos as pausas daquele papo amigo, falando de política, história, música, cinema, teatro, livros, mulheres, musas. Tentando encontrar o sentido da vida, a razão de viver, o destino do mundo, o nosso destino. Depois, ficaremos ainda algum tempo olhando as estrelas, e após um último cigarro e uma mijada em comunhão — aos pés da santa madre igreja (teríamos solapado seus alicerces?) — ergueremos nossos braços num adeus. Percorrendo as ruas já escuras e quase já desertas da nossa Vila Santa Maria, voltaremos às nossas casas— nossos lares—, e nos recolheremos ao nosso leito de juventude, à espera dos sonhos e à espera deste amanhã”.



1 – Marca de um dos microfones que utilizamos;

2 - Apelido da mesa de som montada por nós;

3 - Benjamim Hetesy Filho;

4 - Bruno Bendinelli;

5 - Fritz Peter Bendinelli;

6 - Antonio Roberto Mões;

7 - José Flavio Rett;

8 - Álvaro Luiz de Vincenzo;

9 - Roberto Sodré;

10 - Otávio Franco da Rocha (1946 - 2003);

11 - Kaoru Otsuyama;

12 - Feizal Jarina (1942 - 2012);

13 - Douglas Moretti Freitas;

14 – João, Eurides e Oswaldo;

15 - René Bezian;

16 - Marcel Thieblot;

17 - Alesso (deste não me lembro o sobrenome, se é que me foi dito na época;

18 - Wilson Julio Gonçalves;

19 - Isaltino Julio Gonçalves

“... e hoje, passados tantos anos, ao ouvir rádio, através do Gradiente na sala, o Philips à cabeceira, o walkman Aiwa, pelo Sony ICF-SW 33 (que possui ondas-curtas), ou pela web, por vezes fecho os olhos e imagino estar ouvindo o Anderson. Então, pouco a pouco, vou recuando no tempo e lá de longe vem vindo, brilhando cada vez mais forte aquela luz verde, trazendo de volta, ainda que por breves instantes, a magia do olho mágico. Só não traz de volta (que pena!), a inocência daquele menino de nove anos.”1

“... e jamais esquecerei aquelas vozes, que tanto marcaram minha vida. É pena que elas estejam ficando cada vez mais distantes e cada vez mais fracas.”2

(1) O. ROCHA - A Magia do Olho Mágico.

(2) WOODY ALLEN - final de “A Era do Rádio”.

vsm-1961/1968

vsm/cva/jf/pg/indaiá - 1990 - 2012