MANGORETA

O texto a seguir foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

MANGORETA

— Ô sua Mangoreta!

O apelido era ofensivo porque, segundo diziam, lá pras bandas da beira-mar, uma velha corcunda, tão feia quanto má, era conhecida pelo apelido de Mangoreta. Não me lembro com quem nem quando aprendi a dizê-lo. Sei apenas que o palavrão saía espontâneo em revide a qualquer ofensa, tabefe ou beliscão de uma das minhas irmãs mais velhas que eu.

Uma tarde, quando uma delas acabava de limpar a sala, eu, com meus sete pra oito anos de travessuras, entrei porta adentro, deixando pegadas de poeira que se faziam lama pelo assoalho ainda molhado.

— Seu porcalhão, nojento! Olha só a sujeira que fizeste! — berrou ela, partindo logo pra cima de mim com as agressões costumeiras nesses momentos.

— Man-go-re-ta! Man-go-re-ta! Man-go-re-ta! — revidei e fugi em disparada, pela mesma porta pela qual entrara, a olhar pirracento pra mana que me perseguia com a vassoura em riste.

Já no portão do cercado, senti ter esbarrado em alguém e assustei-me com uma voz cavernosa ao meu ouvido.

— O que é, meu filho? 'Tô aqui. O que é que 'tá cuntecendo?

Voltei-me e deparei com um rosto pregueado atrás de um nariz adunco quase roçando o meu. Um lenço encardido, em nó sob o queixo fino, fazia encovar-se mais ainda a boca banguela. Emolduravam a testa umas madeixas de cabelos brancos. Brancos não. Amarelados pela sujeira e o pó das estradas.

Afastei-me de mansinho, deslizando as mãos às costas pela cerca do quintal e pude observá-la por inteiro. O dorso recurvado, qual um bodoque sob a giba enorme, pendia pra frente, como se ela carregasse na corcunda o peso dos longos anos. Uma saia preta, ou melhor, já sem cor definida chegava-lhe aos pés empoeirados e descalços.

Ela continuava a olhar-me interrogativa e trêmula, apoiada ao bordão ensebado pelas mãos ossudas. Depois, firmando-se ao batente do portão, ela se agachou num gemido, acocorando-se sobre a mochila.

— A Mangoreta, que tu chamava, sô eu. Todo mundo me chama ansim. Decerto por eu sê ansim feia.

Aquela aparição com tal nome parecia-me irreal, pois o terrível apelido — Mangoreta — sugeria-me um ser lendário. Jamais eu tinha imaginado que a tal Mangoreta existisse de verdade. Minha irmã, também criança ainda e de poucos anos mais que eu, estacou à porta por alguns segundos ante a estranha visão, sumindo em seguida lá pra dentro de casa.

— A tua mãe 'tá em casa, menino? — perguntou num grunhido.

Não consegui responder. O medo paralisou-me por inteiro, e eu me plantei ali encolhido ao canto do cercado.

— 'Táis com medo de mim, 'táis, meu anjo? Tadinho! Não carece tê medo, não. Eu sô ansim feia, mas não sô má, como dize, não. E a feiúra que eu carrego, esta cacunda, foro os sofrimento que me causaro. Mais, sabe, eu tamém já fui moça... e bonita!

Os olhos da pobre mulher brilharam de repente, e ela adquiriu momentaneamente aquele ar de moça faceira à lembrança de seus bons tempos. Depois se turvaram ainda mais de tristeza no seu desabafo.

— Despois casei... tive um filho... lindo que nem tu. Um dia ele sumiu dos meus olho. Devia tê uns cinco pra seis ano o coitadinho. Fiquei quase loca de tanto percurá o pobrezinho por toda parte... Não tive como achá o meu menino nem vivo nem morto. Decerto o pobrezinho foi robado e carregado pra longe. Onde andará ele agora? Só Deus Nosso Senhore é que sabe. Mas onde ele 'tivé, minhas oração hão de 'tá com ele.

As lágrimas encheram os olhos da infeliz até rolarem pelos sulcos da face, e eu senti um aperto no coração. Tive até vontade de ser o filho daquela miserável, pra poder lançar-me em seus braços e fazê-la feliz no pouco de vida que ainda lhe restava. Senti vergonha do medo tolo que tive. Seus olhos, embora apagados, eram tão meigos, exprimiam tanto amor... Fiquei ali pregado ao chão a olhá-la já sem medo.

— Vem, meu menino, vem! Não vô te fazê male, não! — convidou com voz doce, estendendo a mão trêmula.

I rresistivelmente caminhei pra ela, que pousou a mão sobre minha cabeça, num gesto de bênção, com tanto calor, como se reouvesse em mim o filho perdido. E eu me senti feliz por comportar-me como tal.

— A senhora deve 'tá cansada e com fome. Sente-se aqui, que eu vô buscá arguma coisa pra senhora comê — falei depois de algum tempo, apontando pros degraus da escada.

— Não se vá, meu anjo! Fiquemo mais um cadinho ansim... fazendo de conta... A fome pode esperá um poco. Tu éis o premero, em tantos ano, que entende a minha dore e me dexa tocá... Todos foge de mim por eu sê ansim... como se eu fosse um bicho nojento, perigoso, um cachorro sarnento.

Senti uma lágrima quente em meu braço. Olhei seu rosto, onde as lágrimas, o suor e a poeira se amalgamavam nas reentrâncias das rugas profundas. Apesar do mau cheiro dos suores nunca lavados, de roupa suja... de miséria, não senti nojo. Abraçando-me ao seu pescoço, dei-lhe um beijo.

A pobre velha estremeceu de alegria e, num misto de desvario e contentamento, murmurou baixinho:

— Meu filho, meu filho, filho da minh'arma! Quanto tempo eu esperei por ti, meu filho!

Depois de acariciar longamente meu rosto, ergueu-se com dificuldade, pôs a mochila às costas e saiu pela estrada, repetindo ao vento que bulia nos cabelos brancos:

— Que bom! Achei meu filho! Que bom! Achei meu filho!

Momentos depois, ela sumia na curva distante sem ao menos olhar pra trás.

Nunca mais tornei a vê-la. E daquele dia em diante, não apelidei mais minhas irmãs de Mangoreta.