UM CASO ESTRANHO

O texto a seguir foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras. Antes de lê-lo, sugiro a leitura de "Maria Marciana", para inteirar-se dos acontecimentos anteriores.

UM CASO ESTRANHO

Dias depois da morte de Maria Marciana fui mandado à tafona, e o caminho passava necessariamente pela casa da falecida. Por isso convidei um amiguinho, colega de escola, pra ir comigo, e ele me acompanhou prontamente. Ao ver fechado o rancho, aonde tantas vezes eu tinha vindo trazer uma trouxinha de comida, me sobreveio um sentimento estranho, um remorso sem motivo, pois eu só tinha feito o bem pra pobre velha. Na volta me assaltou inicialmente o mesmo sentimento acompanhado de tristeza por saber que nunca mais eu iria vê-la. Depois fiquei alegre ao lembrar do que mamãe me dissera ao tirar a vela da mão da defunta: "Dormiu sim, nos braços de Deus, pra sempre".

Uma centena de metros adiante, meu colega, tão medroso ou mais que eu, externou o medo que também estava sentindo.

— Já pensou, Pedro, se a Maria Marciana aparecesse pra gente...!

— Ela que não seja boba, que eu passo uma rasteira nela — retruquei, fazendo-me de corajoso, quando na verdade eu estava me borrando também.

Continuamos caminhando, e o medo foi ficando pra trás, acabando ambos por esquecê-lo e a morta. Já tinha escurecido bastante quando chegamos à cachoeira. Havia chovido bem por aqueles dias, de tal modo que a água encobria uma pedra existente poucos metros acima da passagem.

Quando eu estava atravessando a pinguela, vejo sobre a dita pedra uma figura branca. Parecia uma mulher magra ali parada, fazendo não sei o quê. Ainda hoje lembro que a barra do vestido dela tremulava ao vento. “O que será que a Augustinha ‘tá fazendo ali a esta hora?”, me perguntei em pensamento. Quis até perguntar, mas acabei me calando.

Augustinha era uma jovem que trabalhava de doméstica na casa mais próxima dali.

Não dei maior importância ao caso, e fomos adiante. Ao termos vencido o morro, a mais de cem metros longe da cachoeira, eu interpelei o amigo.

— O que será que a Augustinha ‘tava fazendo lá em cima da pedra, Toninho?

— Que pedra? Que Augustinha? Eu não vi nada — respondeu ele, arregalando os olhos pra mim.

— Ué não viu! ‘Tava bem em cima da pedra no meio da cachoeira...

— É bobage tua, rapaz! Nem dá pra chegá lá, pois a cachoeira ‘tá cheia — lembrou.

De repente ele parou, olhou-me de olhos esbugalhados de pavor.

— Foi ela, Pedro. Tu disseste aquela besteira, e ela veio...

— Ela quem, rapaz? — perguntei, já me arrepiando todo de medo à lembrança do que havia dito e ao pensamento de ter visto uma assombração.

O medo acompanhou-me até a casa, e eu não me sofri sem contar pra mamãe. Ela, mulher simples, como simples era sua fé imensa, acreditou.

— Reza pra ela, reza, meu filho, reza. Ela veio foi te agradecê as tantas veiz que tu levaste comida pra ela. Mas escuta, meu filho, ela ‘tava de branco, é? — perguntou balançando a cabeça.

— ‘Tava. Bem branquinha. Até chegava a brilhá no escuro — confirmei.

— Então ela ‘tá sarva. Que bom!