Opus 27

OPUS 27.

CRÔNICA À LUZ DA LUA EM DÓ SUSTENIDO MENOR

OU

SOBRE COMO PASSEI A DESEJAR ME TORNAR UMA ESTRELA DEPOIS DE MORRER

(Renan Flores)

Há poucos dias entramos em lua cheia. Nunca fui muito de prestar atenção nas mudanças de fase da lua, mas dessa vez isso chamou minha atenção.

Estamos em pleno verão. Odeio essa estação. Não é só o calor do sol que me incomoda. O calor humano também me irrita, especialmente quando sou obrigado a pegar dois trens lotados por dia. Tão lotados que é difícil até respirar. A sensação de corpos desconhecidos quentes e suados de encontro ao meu corpo. Mais de uma vez fui obrigado a descer só para respirar e tomar coragem. Tudo isso sob um causticante calor de quase quarenta graus todos os dias.

Nem mesmo de noite o calor diminui. O ar fica estagnado e silencioso. Somente as moscas ousam quebrar isso que eu chamo de sepulcro quente e nefasto.

O céu já não é daquele negro profundo com o qual estou acostumado desde meu nascimento, mas de um azul-turquesa um ou dois tons mais escuro que aquele que prenuncia a aurora. Apesar de olhar para o relógio e constatar que ainda falta muito para o nascer do dia, meu instinto mantém-se em estado de alerta, antecipando o surgimento da maldita cara amarela a qualquer instante.

Como mencionado anteriormente, entramos em lua cheia. Só reparei nisso, pois, chegando em casa, por volta das onze e meia, observei sombras nítidas desenhadas no chão, formadas pelas casas, telhados e postes. Aquilo que não apresentava nenhum tipo de obstáculo no caminho entre ele mesmo e a lua era banhado por uma forte luz azulada vinda do satélite.

Olhei em direção ao corpo celeste e vi uma grande bola branca de pura luz, rodeada por um halo esfumaçado. Entrei dentro de casa.

No dia seguinte, me deparei com a mesma situação na volta pra casa. Mas o céu estava nublado, e às vezes a lua era encoberta pelas nuvens. Mas tão forte era seu brilho que era possível vê-la mesmo através da mais espessa nuvem.

Atravessando o quintal, reparei num gato ali parado. Era minha gatinha de estimação, Mel, que sempre me recebia miando no portão. Ela olhava fixamente para a lua. Parecia que nem tinha reparado em minha chegada.

Tentei chamá-la pra dentro, mas ela preferiu continuar lá sentada, observando a lua.

Não consegui dormir. Revirei-me por algumas horas na cama e nada do sono chegar.

Minha mente estava em rebuliço. Mil pensamentos me assaltavam, como uma grande represa de pensamentos que acabara de romper. Desci à cozinha para beber água e aliviar o calor. Em certo momento relembrei a cena da gata e imaginei se ela ainda estaria lá no quintal, observando a lua.

Saí para procurá-la, mas não a encontrei. Levantei meus olhos e olhei para a lua. Estava bem grande e redonda, e emita um forte clarão contra o céu azul-turquesa. Estava linda.

Não sei se era pela luz forte, ou pelo tom mais claro do céu ou se apenas por uma observação mais minuciosa nesses meus quase vinte e um anos. Mas vi muitas estrelas, todas brilhando com força, quase tão forte quanto o brilho da lua. Comumente eu via tantas estrelas que podia contá-las nas mãos, e seu brilho era tão difuso que nem valia a pena uma pausa para apreciá-las.

Mas nessa noite eu via muitas e muitas estrelas, tantas que não podia contá-las nem se quisesse. E brilhavam com tanto esmero, com tanta força. Fiquei encantado com esse espetáculo novo e deixei-me a observá-lo por alguns minutos.

Voltei para meu quarto. Senti vontade de abrir a janela do meu quarto para certificar-me de que as estrelas ainda estavam lá. E estavam. Todas as dezenas de estrelas brilhantes coroando uma angélica lua com o céu azul-turquesa servindo de fundo.

Voltei para a cama e dormi.

O outro dia foi daqueles onde coloquei a definição do termo “maníaco-depressivo” à prova.

Acordei enérgico, cheio de ideias mirabolantes (que foram brutalmente rechaçadas por meus colegas de TCC). Cheguei em casa amuado, depressivo e com vontade de dormir o máximo possível.

Entrei na Internet para sair logo em seguida. Nem mesmo minha melhor amiga foi capaz de me segurar na frente do monitor. A verdade é que só entrei por causa dela, porque queria conversar com ela, dividir esse peso com ela. Aquela situação em que nada no mundo pode te fazer se sentir melhor, exceto a atenção e as palavras de alguém em quem você confia profundamente.

Mas infelizmente eu sou de natureza mimada e introspectiva e me mantive calado. Confesso que o que eu realmente queria é que ela magicamente lesse meus sentimentos e os colocasse pra fora por mim. Um simples “tá tudo bem?” bastaria. Fiquei esperando e esperando, olhando para a tela do computador, até que finalmente perdi a paciência e fui embora.

Ao passar pelo quintal, em direção ao meu quarto, olhei para a lua. Se isso é possível, ela estava mais linda do que no dia anterior. O halo de luz em volta dela era como um véu semitransparente que tornava sua beleza ainda mais misteriosa e sedutora. E as estrelas brilhavam e pulsavam de forma encantadora, como múltiplos pontinhos pululando no infinito. Assaltou-me de súbito a lembrança de quando minha mãe, em todo Natal, decorava uma árvore com luzes de pisca-pisca.

Senti algo diferente dentro de mim. Não digo que era uma coisa nova, muito pelo contrário, era uma coisa antiga e remota, mas não a reconhecia. Como se uma certa quantidade de sangue que percorria meu corpo durante a infância tivesse sido armazenada em algum lugar em meu corpo, conservando as sensações infantis, pra finalmente ser liberada no meu sangue adulto, trazendo imagens táteis do passado.

Sem me preocupar com a sujeira do chão, exatamente como uma criança, deitei-me no quintal e pus-me a admirar a lua e as estrelas. Mesmo quando eu fechava os olhos as estrelas continuavam a piscar.

Comecei a filosofar sobre o papel das estrelas na vida do homem. Muito antes de eu nascer elas já estavam ali e mesmo cem anos depois que eu morrer elas continuarão ali. As mesmas estrelas que meus avós admiraram, cá estava eu admirando também. As mesmas estrelas que guiaram Colombo à América, as mesmas estrelas que guiaram os três reis magos a Jesus Cristo, as mesmas estrelas que Aristóteles contemplou enquanto teorizava suas Quatro Causas, cá estava eu contemplando também. Uma estranha relação temporal capaz de colocar em pé de igualdade o maior e o pior dos seres humanos.

Qual seria o papel das estrelas em minha vida? A que grande descoberta elas me guiariam? Cheguei à constatação de que estrelas não têm sentimentos, e por isso mesmo eu as deveria invejar.

Uma leve brisa se formou, acariciando meu corpo com delicadeza. Podia senti-la como pequenas mãos me tocando. Não me importei de que alguém me encontrasse nessa situação. Fechei os olhos e cochilei. Mesmo o chão, sempre frio e duro servindo apenas de apoio para meus passos, nessa noite adquiriu um significado especial. Como um fio terra ligando meu corpo ao solo, sentia algo esvaziando dentro de mim, talvez o excesso de cargas negativas se dissipando, me dando uma inédita sensação de prazer.

Fiquei cerca de meia hora nisso, até que, enfim, abri os olhos. Levantei-me e fui em direção ao meu quarto para dormir. Senti uma necessidade enorme de tomar um banho, pois sentia necessidade de sentir a água.

Apaguei as luzes e, apesar do calor, mudei a posição do chuveiro para “inverno”. Na escuridão senti a água quente como um calor humano que me envolvia por todos os lados, me acariciava e me protegia.

Não conseguia dormir. Esboçava um abraço em mim mesmo, em posição fetal, tentando envolver todo meu corpo com meus braços. Fui até o quarto de minha mãe e peguei outro travesseiro. Deitei de lado. Aquele que já estava no meu quarto eu usei de apoio para a cabeça, o outro eu abracei com força. Podia sentir o mesmo calor que sentira no banho emanando dele. Aquele travesseiro me dava uma sensação de carinho e proteção. Apaguei as luzes e finalmente chorei. Não de tristeza, e muito menos de alegria, mas por ter descoberto algo novo dentro de mim que eu não sabia que existia.

Dormi abraçado ao travesseiro.

Curioso o fato de no mesmo dia eu ter descoberto minha ligação tanto com a terra quanto com as estrelas, tão extremos os dois pontos. Talvez não só com esses dois elementos, mas com todos os outros que me rodeiam. Talvez eu esteja descobrindo minha ligação com o mundo à minha volta, aos poucos. Talvez eu também esteja descobrindo minha ligação com as pessoas que são importantes na minha vida, e espero um dia poder descobrir minha ligação comigo mesmo.

Mas é só o começo de um novo ciclo, e ainda é muito cedo pra saber disso. Serei paciente.

Renan Flores,

Nove de março de dois mil e doze.

E foi assim que passei a desejar me tornar uma estrela depois de morrer...

Renan Gonçalves Flores
Enviado por Renan Gonçalves Flores em 09/03/2012
Código do texto: T3545302
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