SOBRE O AMOR QUE TRANSFORMA

Aos finais de tarde, principalmente neste clima de verão, tenho por hábito caminhar pelas calçadas da minha rua não apenas para me exercitar mas para também observar a paisagem.

Entre tantos personagens assíduos do meu entorno, até há pouco tempo era o único protagonista do palco do seu cotidiano, ele ficava ali sobre um degrau duma escadaria como se fosse o dono da rua.

Faz algum tempo que eu já havia dado pela sua falta porque sempre que chegava perto do seu território eu procurava localizá-lo para mudar minha trajetória, já que ele, sempre muito arredio e com sua expressão extremamente carrancuda, espantava a todos que por ali passavam.

Assim, a impressão que eu tinha era que ambos na defensiva nos assustávamos um com a aproximação do outro.

Se eu arriscasse uma corrida pela calçada aí sim ele se esguelava no latido a avançar em minha direção.

Tinha a atitude dum cão de patrulha.

Eu nunca soube da sua história de vida, mas acreditava que talvez ele pertencesse ao dono da padaria da esquina, já que era ele quem sempre lhe dava o que comer, porque os demais que o conheciam, pela sua agressividade e pela sua marcação cerrada da rua, temiam dele se aproximar.

Pelo seu sumiço no tempo achei que tivesse morrido, já que suas condições de saúde pareciam precárias.

Hoje, enfim, de repente eu o avistei ao longe, acompanhado dum cuidador, que o trazia numa coleira juntamente com mais dois cãozinhos a passear no meio fio. Fiquei em dúvida se era mesmo ele.

Perguntei sobre só para ter a certeza de que se tratava daquele mesmo cão patrulheiro da rua que sempre me fazia correr.

Perguntei na dúvida simplesmente porque não o reconheci, tamanha era a sua diferença de atitude.

O cão bem cuidado tinha outro olhar, dócil e calmo, e nem de longe lembrava o animal feroz que conheci outrora, aquele que rosnava e latia vorazmente à mínima aproximação inofensiva de alguém.

Soube então que ele havia sido vítima de espancamento por desconhecidos e que depois do incidente de violência aquele cuidador o havia adotado juntamente com aqueles outros cachorrinhos que ali passeavam na sua companhia.

Aquela sua nítida e revolucionária mudança de comportamento, notada em poucos segundos, me deixou boquiaberta, a me fazer entender que não são apenas os animais irracionais que nos surpreendem com suas atitudes agressoras e gratuitas, muitas vezes embasadas em sofrimentos ocultos e em seus consequentes medos reprimidos.

Aquele cãozinho dócil me foi um exemplo vivo da força imediata e revolucionária do amor.