MEU OUTRO EU
Há cerca de quarenta e cinco anos, eu coloquei o Ricardo, um amigo de infância, que se destacava pelo bom coração e pelos olhos que lembravam jabuticabas, no lado mais aconchegante do meu coração. A razão principal é que, apesar de franzino, ele me ajudava a bater nos meninos da escola primária.
Isso mesmo! Eu era a própria Mônica, personagem do desenhista Maurício de Souza. Qualquer menino que implicasse comigo ou com ele, chamando-o de “Taruíra”, eu os pegava, torcia-lhes os dedos e os fazia se ajoelharem e pedirem perdão.
Ricardo era o meu amigo de fé, merecedor de um saco de pipocas, de uma mariola, de uma laranja, ou apenas de uma mordida no meu pão com mortadela. Talvez por isso, em agradecimento, ele era o os meus olhos e ouvidos e me contava quando os pestes se referiam a mim como “gorda”, “feia” ou “metida”.
O tempo passou, em 1968 eu fui morar em Linhares e nunca mais o vi. Em uma manhã de janeiro de 2012, porém, em Manhattan, N.Y, após descer da charrete em que o guia me apresentara o Central Park superficialmente, decidi conhecê-lo melhor caminhando.
Em virtude do frio e da chuva fina que caía, poucas pessoas tiveram a minha idéia e, talvez por isso, ao passar perto de uma espécie de lanchonete fechada (há umas duas ou três no interior do parque), vi um homem sendo acuado por dois outros.
Não sei se era assalto, não sei se era acerto de contas... Concordo que diante de algo assim uma mulher normal correria para longe do trio, mas como eu sou meio doida, de ímpeto gritei: “Heeeelp! Poliiiiice!” , “Heeeelp! Poliiiiice!”
Assustados com meus gritos, um deles correu, o outro escorregou e foi levantado pelas mãos da sua antiga vítima. Levantado não é bem o termo, pois o antigo agressor só conseguia ficar de joelhos, se contorcendo de dor nos dedos que estavam quase sendo quebrados. Enquanto isso o homem que eu “salvara” falava com raiva para o ajoelhado: “Ask for forgiveness! Ask for forgiviness!” (Pede perdão! Pede perdão!).
A cena me pareceu familiar, eu voltei ao passado e me vi exemplando os moleques que implicavam comigo ou com o Ricardo na nossa infância, era eu quem costumava mandá-los se ajoelharem e me pedirem perdão.
Não vi polícia, acho que ela não apareceu. Voltei a mim quando ouvi um “Thank you, ma’am!”. Nessa hora olhei para o rosto de quem me agradecia e em um lampejo reconheci o formato de seus olhos.
Sem pensar, perguntei-lhe, em português, o seu nome e quando ouvi “Ricardo” como resposta, eu não sabia se estava sonhando ou se desmaiava. Identifiquei-me e vi nele a mesma reação que eu acabara de ter.
Após nos abraçarmos, fomos juntos até uma lanchonete, onde conversamos por umas três horas. Contei-lhe tudo sobre minha vida e soube que durante a ditadura militar os seus pais haviam emigrado para a América, onde ele estudara, fora vítima de bullyng e se defendera utilizando minhas “táticas de defesa pessoal”.
Disse-me que se casara em 1982 (ano em que me casei), que é muito feliz (assim como eu), que tem dois filhos, um de 25, que é antropólogo (meu filho mais velho tem essa idade e essa profissão) e outro de 24, que é advogado (mesma idade e profissão de meu caçula).
O tempo voou, despedimo-nos às 16 horas e eu voltei para o Brasil no dia seguinte. Desde então, a cada vez que nos comunicamos por e.mail ou telefone nosso primeiro cumprimento é: “Olá, meu outro eu!”