DDD - Diário de Derrotas [24]

06h55m

Acordar é pagar pra ver.

Tweet: Não basta acordar com a alma miserável, tem que acordar com o corpo na mesma s(h)ituação.

07h20m

Essa parece uma manhã que eu já tive. Que acordei bem disposto e cinco minutos depois estava me esvaindo numa caganeira doida, com enjoo e dores de cabeça lancinantes.

Tweet: Só andei até o ponto de ônibus e já tô querendo voltar pra cama e lá ficar em posição fetal, chupando o polegar e rezando pro mundo acabar.

08h00m

Meu celular toca assim que desço da lotação e não consigo atender. Mando uma mensagem de volta. Não obtenho resposta. Subo a escada rolante atrás de uma bela de uma bunda.

08h05m

Desliguei o celular. Estou na plataforma. Acabei de entender o motivo da debandada que estava saindo pelas catracas na hora que entrei. Em Itaquera, não há integração (gratuidade) entre CPTM e Metrô. As pessoas estavam saindo porque aconteceu alguma coisa que parou a porra toda. Fiquei sabendo que um trajeto de quinze minutos estava sendo feito em sessenta.

O trem que está aqui está parado e com as luzes apagadas, e as pessoas fazem de tudo para conseguirem meio palmo de espaço pra botarem seus cus gordos pra dentro.

Eu dou de ombros; eu e minha barrinha de cereal no estômago.

Tweet: Os astros conspiram. Para te currar com areia.

09h35m

Consegui, enfim, chegar na Paulista. Já estou atrasado pra caralho, mas jamais que vou deixar de comprar comida pra bater um cartão de ponto.

09h55m

Tenho sete e-mails pra fazer cobrança e emitir recibos. Emitir esses recibos de cobrança requer quatro planilhas distintas e um sistema aberto, além do próprio e-mail. Requer atenção e paciência.

Tenho quarenta notas para liquidar. Pelos valores, já percebo que são notas de honorários. Liquidar notas de honorários requer uma planilha para dar baixa. Depois, requer uma carimbada de "liquidada" em cada uma das notas. No carimbo, há o espaço para a inserção da data. E como as notas são enviadas no valor bruto e o banco as paga com os tributos já destacados, devo, em cada uma delas, escrever "liquidada por valor x com destaque nos tributos". Depois, tenho que lançar cada valorzinho que compõe o total da nota num sistema. Cada nota, em média, tem cinco folhas atrás, e cada uma delas tem um número de contrato com dez dígitos, que tenho que digitar no tal programa para fazer a busca da causa correta. Depois, enfim, tenho que tirar três cópias de cada nota, sendo que um calhamaço de cópias tenho que dobrar na metade para entregar no outro setor.

E ai de mim se esquecer de colocar data.

E ai de mim se esquecer de lançar na planilha.

E ai de mim se esquecer de lançar cada contrato em separado no sistema.

E ai de mim se esquecer de não colocar que os tributos foram destacados.

E ai de mim se esquecer se faltar uma cópia.

10h10m

Sinto meu estômago pesado. Sinto que se eu ensaiar um peido, me cago. Sinto meus olhos ardendo. Sinto a vontade de falar "É por causa da sua mãe que estava fogosa ontem à noite" quando me falam que estou com cara de acabado. Como se eu não soubesse, como se eu não tivesse uma janela de dois metros espelhada bem na minha frente. Como se tivessem uma cara melhor do que a minha...

Tweet: Os arautos da preguiça estão inspirados hoje, parabéns.

13h00m

Não resisti e reinei no banheiro aqui do escritório. Não gosto muito dele porque ele não tem janelas. Não gosto muito dele porque essa privada é meio suspeita; às vezes não há água para dar descarga. Já dei conta de todos os recibos, só estou esperando as benditas guias voltarem pra eu entregar e ir comer. O problema é que me sinto inchado e cheio; tenho certeza que não conseguirei comer porra nenhuma durante o almoço. Ainda mais hoje, dia da bendita hegemonia da merda da feijoada.

13h30m

P: Nossa, você não sabe como me anima pela manhã com a sua alegria de viver.

R: Ah, obrigado. Estou pensando em trabalhar como agente desmotivacional.

P: Nossa, as pessoas sairiam da sua palestra e já se jogariam na primeira ponte que vissem.

R: E não é uma maravilha? Imagina o metrô, como não ficaria vazio!?

P: Te dou total apoio nessa empreitada, sendo assim!

14h10m

Homem que é homem escolhe a porta do metrô de acordo com a mulher mais gostosa. E isso não seria diferente em restaurantes. Estou diante de arroz, feijão preto (bleh), quebabe de abóbora, beterraba ralada, um teco mirrado de frango e algo que não sei o nome, mas que é bom, apesar de parecer vômito. Vou pagar vinte reais nesse pratico de comida, graças ao meu estômago. O pior é que agora, além de tudo, estou com azia. Ah, também estou diante de uma dessas milfs loiras sarapintadas, de calça social clara, coxuda, e com cara de quem pega o pau do cara com cara de puta e bate na cara.

14h15m

Já não é de hoje que eu percebi que olho com ódio no coração as pessoas que se aproximam da travessa de abacaxis e/ou da porta do banheiro.

14h25m

Acabei de perceber que vou precisar ir ao banheiro.

14h30m

Estou no banheiro. O cidadão que me precedeu fez a gentileza de não dar descarga e deixou dois tocos boiando. É a terceira vez que sento numa privada hoje. E, desta vez, não consigo nada; nada além acentuar a dor de barriga. Dor de barriga sem merda. Merda.

15h00m

Acordei aqui no estacionamento com o palito de dente que eu tinha entre os dentes caindo no chão. Faço contato visual com alguém pró-ativo e já me dá aquele pavor na alma. Levanto e subo ao calvário.

15h45m

Eu estava discutindo alguma coisa cabeluda sobre a emissão ou não de uma nota num valor equivalente a seis meses do meu salário quando o telefone tocou.

- Sabe o que é? Os meninos já foram pro protocolo e a gente precisa desse documento urgente. Você pode ir lá?

Ir lá = ir no CAT. CAT = Centro Administrativo Tatuapé. Tatuapé = bairro que fica a meio caminho de casa. Ir até o Tatuapé faltando três horas pro fim do expediente, ficar a meio caminho de casa, e depois voltar ao escritório.

- Eu vou sim. Eu vou sim.

Respondo, feliz da vida, e sentindo, novamente, as requisições intestinais pulsando abaixo.

15h52m

Ao passar a catraca do Metrô de um lado, entrando, vi do outro lado, saindo, um dos office-boys que deveriam fazer esse serviço.

15h55m

R: Rapaz, precisa de crachá agora nas peruas do CAT?

T: Se fodeu kkkkkkkkk Vai ter que vir a pé s2 Precisa de crachá sim, ou explica a situação, de repente eles liberam.

R: Bosta. Pior que nem sei onde desço nessa porra...

T: Pega qualquer busão que passa na Celso Garcia e desce depois da biblioteca.

Faz um calor desgraçado dentro desse vagão.

16h29m

Consegui chegar, e a pessoa que deve me entregar tal documento não atende o telefone. E não atende. E não atende. E eu fico esperando alguma coisa acontecer, com minhas tripas se revirando, fazendo sons guturais.

16h45m

Estou na recepção do CAT. Me trouxeram os documentos e uns envelopes a mais. Estou aqui porque aqui há um banheiro. Preciso dele. Preciso botar minha bunda na quarta privada diferente de um mesmo dia.

16h57m

Tem uma academia dentro do CAT. Tem uma baixinha que malha saindo de lá com uma calça coladíssima ao corpo. Dou de ombros. Subo a rua a caminho do ponto de ônibus. A caminho da Celso Garcia. Desce um ônibus. Desce outro. E outro. E outro. Todos com Metrô Tatuapé como destino. E eu continuo andando.

17h10m

Que ótimo, só agora consegui chegar no ponto. E é um ponto que bem conheço: é o ponto do hospital que tive que vir umas seis vezes quando quebrei a mão. Todo esse metro quadrado aqui tem um pouco do meu desespero da ocasião. E agora tem outro desespero. Lugar maldito.

17h30m

Ainda não passou porra de ônibus algum.

Tweet: Vou começar a extrair uns palavrões novos com base nas composições químicas dos rótulos de shampoo, porque meu arsenal já foi todo só hoje.

18h10m

Consegui chegar no escritório. Estava tão mal no Metrô que fiquei torcendo pra alguém se suicidar pra ver se isso me faria um bem. Mas ninguém faz isso quando estou nas paragens.

18h35m

Novamente estou sentado numa privada. Não aguento mais mijar pelo cu, gente. Não aguento mais ficar passando papel no rabo. Ficar lavando a mão. Ficar me perguntando quantas vezes mais terei que cagar até o final do dia. Não sei de onde vem tanta merda, sendo que mal consegui comer hoje. Minha cabeça pesa uma tonelada e meus olhos doem também. Sinto que estou com aquele bafo típico de febre. Lavo as mãos e o rosto e meu nariz começa a sangrar pra caralho. Sinto que não deveria ter saído da minha caminha linda.

18h40m

J: Por que você mastiga o comprimido?

R: Porque a vida é bem mais amarga.

18h50m

Não preciso nem falar que não vou pra faculdade hoje. Estou no ponto de ônibus, praticando a inveja dessas pessoas que podem malhar numa academia cuja mensalidade é equivalente a um terço do meu salário.

19h00m

O ônibus vem, vazio. Com esse cobrador que fica te olhando e de repente grita um BOA NOITE que te faz perder o rebolado. Eu gosto da educação dele, mas o problema é que ele faz questão de desejar a boa noite para todos os mil passageiros que entram no ônibus, e isso prejudica meu soninho.

Sim, o mundo gira ao meu redor.

Na verdade, até agora, esse ônibus é o ponto alto do meu dia.

Que vidinha...

20h00m

Pela manhã acordo com despertador; à noite, no ônibus, acordo com os cacarejos das operadoras de telemarketing daquela empresinha meia-boca que, caso eu tenha um câncer, foi a culpada. O que eu não consigo entender é como pessoas que trabalham basicamente FALANDO ININTERRUPTAMENTE ainda arranjam forças pra falar MAIS AINDA depois de um dia de trabalho num covil dos mais inóspitos.

20h20m

Estou na dúvida se compro cerveja ou remédio pra dor de cabeça. Ou se compro os dois. Preciso dos dois, depois de um dia desses.

Entro no mercado.

20h25m

Passei esses cinco minutos no mercado dando uma de louco, porque assim que entrei e vi o tamanho das filas, desisti da cerveja e do queijo branco que compraria.

Mas passei cinco minutos secando uma cavala de vestido preto e soltinho, com as costas à mostra e tudo o mais. Não me sinto melhor por isso. Nem pior. Queria me livrar dessas coisas, pra falar a verdade...

20h37m

Cheguei em casa. E há aqui pelo menos quatro moleques da rua falando alto. Já mandei eles irem embora, mas não houve movimento algum para tanto. As pessoas desacreditam. Te desacreditam. Te desdenham. Até que a merda acontece. E a gente é bom e avisa. E tolera e avisa. Depois sucumbe a um acesso de loucura e sai batendo em todo mundo com um taco de baseball tunado com arame farpado, e ainda leva a má fama.

22h51m

Eu nem ia escrever essa porra, de tão mentalmente desgastado que estou. Mas tá aí.

Boa noite.

07/03/2012

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 07/03/2012
Reeditado em 07/03/2012
Código do texto: T3541362
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