MARIA MARCIANA

O texto a seguir foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

MARIA MARCIANA

Pra uns, ela era Maria Rita, pra outros, era Maria Marciana. Qual era seu nome correto e completo eu não fiquei sabendo e acho que ninguém no lugar soubesse, nem minha mãe, que diziam ter sido sua companheira de serviço quando solteira.

Lembro-me que ela aparecia amiúde lá em casa. Não pedia, mas saía de mãos cheias. Nesse tempo ela não era tão perturbada. Morava então numa casinha à beira do rio, na extremidade do potreiro na margem direita.

Eu devia ter meus sete pra oito anos quando ela enlouqueceu de vez. Diziam que foi devido a uma tremenda surra que a deixou, toda lanhada de facadas, muito tempo internada no hospital de Tubarão entre a vida e a morte.

Depois disso, ela passou a morar na margem esquerda, numa casinha de madeira construída pra ela pela comunidade à beira do nosso caminho do sertão. Lembro ainda que ela, ainda desensarada dos lanhaços sofridos do agressor, levantava a blusa e a saia até o pescoço, diante de crianças e adultos, para mostrar as feias cicatrizes nas costas e nas coxas magras que certamente nunca tinham recebido qualquer carícia de homem algum.

Afirmavam os maldizentes que ela tivera um filho, sim, mas a criança morrera logo depois do nascimento ou viera natimorta. Mamãe jurava de pé junto que tais ditos não passavam de boatos.

Pouco tempo depois, com o agravamento da doença mental, ela passou a assombrar toda a região com seus gritos de louca. De longe se ouvia seus berros sem motivo aparente, ditados por sua mente perturbada.

Nos primeiros tempos ela própria cozinhava sua comida e lavava suas roupinhas, mas depois de algum tempo, só o que ela fazia era gritar. As mulheres da vizinhança reuniam-se de vez em quando e iam lá cuidar de seu asseio corporal, mudar-lhe as roupas e limpar a casinha.

Cada vez que minha mãe subia ou descia o morro do sertão, chegava e deixava pães, roscas e outras comidas para ela. Quando não, fizesse calor, fizesse frio, com sol ou com chuva, eu ou Paulo, meu irmão gêmeo, éramos mandados a levar uma trouxinha diária de comida pronta pra ela. Nós dois éramos as únicas crianças que podíamos nos aproximar dela sem temor. As outras eram escorraçadas a cabo de vassoura. Isso porque a maioria delas passava instigando-a com palavrões e até com pedradas contra as paredes do rancho.

Ela, porém, muitas vezes nem notava nossa chegada. Gritando estava e gritando continuava, que de longe ainda se ouviam seus gritos por vezes lancinantes. Outras vezes, porém, ela estava calma e nos recebia bem. Um dia ela até nos presenteou. Abriu uma portinhola que dava pros fundos do rancho, e nós pudemos ver que ela tinha ali trancadas umas oito a dez galinhas. Ela então pegou duas delas e deu-as uma pra cada um de nós.

Nós saímos felizes morro acima, fazendo planos com nossas galinhas. Mas nossa alegria foi curta. Mamãe, ao verificar que as pobrezinhas estavam só em penas e ossos e ouvir-nos dizer que havia mais delas lá presas, deixou seus afazeres e levou-nos por diante de volta à casa da louca, de onde saímos os três, instantes depois, com uma ou duas galinhas dependuradas em cada mão. Pra que não morressem, mamãe levou-as em troca de roupas novas e agasalhos pra pobre louca. Lembro-me que duas delas não resistiram a magreza. No amanhecer do dia seguinte, estavam mortas na casinhola. Talvez devido ao excesso de comida de uma só vez, conforme o parecer da mamãe.

Noutra ocasião ela nos presenteou de novo, dessa vez com moedas. Estávamos novamente eu e o Paulo. Ela levantou uma tábua solta do assoalho embaixo de sua cama e retirou de lá uma lata com muitas moedas e deu-nos umas pra mim e outro tanto pro meu irmão.

Novamente nossos planos foram logo por água abaixo. Ao contarmos o fato pra mamãe, ela foi ter com a amiga louca e recolheu todo o dinheiro antes que algum espertalhão sem escrúpulos se apossasse dele.

E não foi sem tempo. Alguns meses depois, num dia cinco de janeiro, nunca me esqueci desta data, eu estava indo pro sertão com a mamãe e lá pela metade do caminho eu estranhei o silêncio.

— Ô mãe, engraçado, a Maria Rita ‘tá quieta hoje.

— Não me lembro se a mamãe me deu resposta ou não.

Continuamos andando calados, cada um com seus pensamentos, ela por certo matutando nas responsabilidades ou na dureza da vida na roça, e eu... que me lembre não pensava em nada. Mesmo porque as crianças não têm coisas importantes em que pensar a não ser em alguma traquinagem.

De repente, a uns trinta metros do rancho da Maria Marciana, mamãe, que tinha audição apuradíssima, estacou os passos pra ouvir melhor.

— Escuta, que ronco é esse?

— Parece um bicho enforcado — respondi ao ouvi-lo também.

— É a Maria Rita que ‘tá passando mal — exclamou mamãe, disparando à toda.

Eu corri atrás dela. Ao chegarmos à porta, a pobre louca se debatia deitada na cama já nos estertores da morte. Vendo-a totalmente descoberta e descomposta, mamãe tratou logo de cobrir-lhe as partes descobertas, pra que eu não as visse, enquanto corria as vistas ao redor à procura de algo. Ao ver um toco de vela num boião velho, acendeu-o apressada e levou-o pra mão da moribunda.

— Vá correndo lá chamá o seu Varvito! — ordenou-me.

O tal do seu Varvito, como era conhecido por todos e que diziam ser sobrinho de Maria Marciana, morava a boa distância rio acima, dois quilômetros pra mais, da tia. Num átimo eu avaliei a distância e saí em disparada. Nunca corri tanto, pois eu queria estar presente quando a morte chegasse. Embora já bem grande, nos meus nove pra dez anos, eu ainda acreditava que a morte, aquela caveira horrível toda vestida de preto e com aquela enorme foice que eu tinha visto numa gravura, viesse em pessoa pra levar a alma da pobre demente, e eu queria vê-la a todo custo.

Quando entrei de volta à porta do rancho, mamãe quis brigar comigo, pensando que eu não tivesse ido até lá, mas vendo minha canseira, mandou que eu tomasse uns goles de água e continuou na sua oração muda, decerto pedindo a Deus que viesse pôr fim aos sofrimentos da pobre mulher, enquanto o toco de vela se consumia entre seus dedos e os da moribunda, que se debatia na mesma ânsia em que a encontramos.

Depois de muito se agitar, a pobre Maria Marciana aquietou-se mais e, em intervalos de alguns segundos soltou uns suspiros profundos, abrindo desmesuradamente a boca e arregalando os olhos. Depois eu vi quando ela pendeu a cabeça contra o próprio peito e se aquietou de vez. Mamãe continuou ali rezando mais alguns segundos com a vela acesa entre os dedos da morta, depois desprendeu-a e deixou-a cair delicadamente sobre o peito.

— Vá com Deus, minha amiga! — falou, olhando-me depois entre lágrimas.

— Ela dormiu, mãe? — perguntei inocentemente.

— Dormiu sim. Nos braços de Deus, pra sempre.

— O quê? Morreu? — tornei a perguntar, não acreditando ainda que a morte fosse assim – como o soprar de uma vela. E decepcionei-me. Tinha corrido tanto e acabei não vendo a cara da morte. Mas depois me sobreveio um calafrio ao pensar que ela, a ceifadeira de vidas, havia passado bem pertinho de mim sem que eu a visse.

Como naquele tempo não havia inflação, o dinheiro da morta, que mamãe por prudência tinha guardado, serviu pra amortalhá-la e pra ser construído seu túmulo, humilde, sim, mas sem precisar da caridade alheia.

Nota: Esta crônica tem sequência em "Um caso estranho".