'Amanhã eu vou dar um jeito'
Hoje preciso só desabafar, repartir um sentimento que há dias está me maltratando. Há dois anos atrás, mudei para um bairro próximo ao centro da capital, que me apresentou uma realidade bastante chocante. Dentre as inúmeras situações observadas pela minha janela, algumas relatadas aqui no RL, uma em especial. Conheci Renê. O mendigo mais elegante que já vi. Aliás, o único, rs. Um alemão alto, magricela, cabelos grisalhos e olhos verdes. Dono de um olhar sereno e um sorriso bobo, Renê não metia medo nem em uma formiga sequer, ao contrário dos seus demais companheiros. Lembro-me da primeira vez que nos falamos. Ele disse 'ô guria, tu é nova aqui neh, eu sou o arrumador da rua, eu limpo as calçadas, não deixo ninguém bagunçar as lixeiras e sou segurança também, quando tu chegar tarde aqui e quiser, eu te espero na parada de ônibus...' e assim por diante. Me acostumei com a idéia de ter a presença de Renê toda vez que precisava chegar tarde da noite, que precisava de alguém para pagar uma conta na lotérica, ir ao supermercado, enfim...Óbvio que ele fazia tudo isso, e não só para mim, mas para todos os moradores da redondeza, em troca de um prato de comida, algumas peças de roupas, calçados, ou alguns mínimos reais. Eu e minha família não sabíamos mais almoçar aos domingos, sem lembrar de Renê. E assim, nossa relação se firmou. Soube um pouco de sua história de vida, sua família, filhos, sua profissão de torneiro mecânico e a justificativa que me apresentou para ter abandonado tudo e se tornar um morador de rua. Uma bela desculpa, pensei, porque quem teve a oportunidade de conhece-lo e olhar nos seus olhos, sabe que atrás daquela fisionomia aparentemente feliz, se escondia uma grande decepção. Decepção com alguém ou com ele mesmo (não sei o que é pior). Algo que ele se negava a enxergar e que para esquecer se embriagava e fantasiava um mundo perfeito. Sim, porque Renê, ao contrário dos outros, tinha um único vício, a cachaça. Tantas vezes discutimos, porque se recusava a largar aquela 'barriquinha de pinga'. E ele sempre nos ouvia e respondia repetidamente 'amanhã eu vou dar um jeito'. O único mal que fazia era a si mesmo. Renê tinha um olhar perspicaz. Ria muito quando ele elogiava ou criticava meu 'modelito'. 'Essa blusa não combinou não, viu'. (rsrsrrs). Certa vez, voltando do cabeleireiro, o encontrei, ele me olhou e foi logo dizendo 'cortou o cabelo, pintou, fez alguma coisa neh, ficou bem viu guria'. A questão é que ninguém mais percebeu. Em outra ocasião, ele me esperava na porta do prédio, porque encontrara um livro em uma lixeira, 'lembrei de ti professora, quem sabe serve pra ti, quem coloca um livro desses fora, neh professora'. Pedi pra ele autografar a capa, com seu nome completo. Insucesso. (hehe). Sabe, nestes dois anos de convivência com Renê, senti sua evolução, bem como sua força de vontade para que isso acontecesse. Final do ano passado, realizou seu sonho (era o que ele dizia), conseguiu se aposentar. Apareceu o filho, um rapaz tão bonito quanto ele. Renê apresentou-o orgulhoso. Mesmo assim, preferiu morar sozinho na pensão, albergue, sei lá como denominar aquele lugar. Uma pensão que só abriga moradores de rua, pois a mensalidade é uma 'merreca' e o aspecto, nossa. Renê recebeu seus primeiros sálários nos final de 2011. Eu ficava tão feliz ao vê-lo de banho tomado, com a barba feita e pronunciando 'não entendi que matemática é essa', hehehe, referindo-se ao valor de sua aposentadoria. Renê era esperto, sabia que o primeiro salário deveria ser retroativo ao mês que sua aposentadoria se efetivou . De acordo com ele, deveria receber o equivalente a três meses. Bom, deixa isso pra lá, não importa mais, porque Renê não pode aproveitar muito sua nova vida. Eu estava na escola, na semana após o feriadão de carnaval, quando recebi uma ligação, informando sobre a sua morte. Renê foi morto na pensão. Estrangulado e esfaqueado. Conforme a perícia policial, tal maldade ocorrera, porque Renê guardava seu dinheirinho, sua tão sonhada aposentadoria, embaixo de seu colchão. Chorei muito.(silêncio). Ao pedir pra vê-lo, o policial perguntou o grau de perentesco, e ao lhe explicar, senti na expressão frívola dele, um ar de solidariedade, respondendo 'é melhor ficar com a imagem que você tinha dele'. Concordei.
Já se passaram quase duas semanas do ocorrido e confesso que ainda não consegui me recuperar. Me diz que 'matemática é esta', que troca uns míseros centavos por uma vida? Incompreensível à minha capacidade mental.
Guardarei comigo os descontraídos momentos, os aprendizados que obtive com suas simples atitudes.
E pode deixar viu, 'Amanhã eu vou dar um jeito' de melhorar.