A ARCA DE NOÉ E OUTRAS MITOLOGIAS

Desde que o mundo é mundo o ser humano é confrontado com grandes tragédias naturais. Vulcões que cospem fogo e engolem cidades, terremotos que ceifam vidas, enchentes que inundam civilizações. Quando o homem vivia em cavernas não lhe restava qualquer explicação para tais fatos do que o espanto, o pânico, o terror. Diante do mistério, passou a considerar os cataclismos como frutos da ira das divindades. Assim como catalogava as boas colheitas e os tempos de vacas gordas ao bom humor dos deuses.

A mitologia judaico-cristã é rica em histórias fantásticas. Talvez a mais incrível delas seja a de um dilúvio que Deus teria mandado para destruir a vida na terra. Conta o Gênesis que, cansado de assistir aos pecados do homem, Deus se arrepende de tê-lo criado e resolve reciclar a raça humana. A solução foi enviar quarenta dias e quarenta noites de torrencial chuva. Noé e sua família foram considerados os únicos merecedores da compaixão divina. Deus teria ordenado a Noé que construísse uma arca de madeira gigante, na qual transportaria seus entes queridos e alguns animais para recriar a fauna após o evento. Conta a narrativa bíblica que, a tripulação ficou aproximadamente um ano dentro do barco, considerando o tempo à espera da chuva, a chuva propriamente dita e a espera pela terra seca, após o dilúvio.

Algumas dificuldades, porém, são postas para que possamos tomar o evento da arca de Noé como literal. E, principalmente, nos moldes citados. Enchentes sempre foram comuns na história da humanidade. Milhares de vidas foram consumidas por águas revoltas. É difícil imaginar que há aproximadamente 4,5 mil anos uma enchente ou uma tempestade destrua algumas vilas, mate pessoas e os sobreviventes não busquem alguma explicação mística para isso. O homem sempre teve dificuldade para aceitar as tragédias físicas como obra da natureza e não como uma mensagem dos deuses.

Segunda a lenda bíblica, Noé teria construído o maior barco de madeira já feito pelo homem, pelo menos até o século 19. O interessante é que Noé não era dono de nenhum estaleiro, não tinha qualquer conhecimento de náutica e de engenharia, não tinha tecnologia alguma e com parcos recursos para tal empreitada. A linha crédula simplifica o discurso apostando na tese do milagre para a costura de todos os buracos deste enorme pano. Se for considerar toda a problemática, o milagre precisaria ser ampliado para níveis assustadores até para o mais crente. A história da arca de Noé é facilmente refutada por ciências como História, Biologia, Química, Física, Engenharia, Geologia, Geografia e Matemática. Sem barras de ferro seria impossível sustentar um arcabouço de madeira tão grande, exposto a tanta pressão e peso. Como explicar, por exemplo, que um barco do tamanho de um campo de futebol seria suficiente para abrigar bilhões de animais? A Biologia tem catalogados bilhões de espécies animais! Some-se a isso, o armazenamento de comida e água para todos e um espaço para isolar os dejetos. Pelo que consta não houve um pacto de jejum coletivo entre a bicharada pelo prazo de um ano. Só para ilustrar, um elefante adulto ingere em média 80 quilos de comida. Em uma matemática simples, só para deixar o casal de elefantes nutridos seriam suficientes 5 toneladas de comida durante um ano. Sem geladeiras seria uma tarefa complicada manter por esse tempo o almoço e o jantar dos paquidermes. Nem citei o volume de água necessário para saciar a sede dos bilhões de animais. E em qual cantinho ficavam depositadas fezes e urinas.

Noé também deve ter contado com a sorte de encontrar vagando por sua região um casal de cangurus (animais só encontrados na Oceania), um casal de capivaras (patrimônio exclusivo do Pantanal brasileiro), um casal de pingüins (que vive no gelo dos pólos), dois alces canadenses, entre outras milhares de combinações improváveis. O mais incrível é que, quando os europeus chegaram à distante ilha da Oceania encontraram milhões de espécies animais e seres humanos. Após o dilúvio, foram a nado para lá?

Para não detalhar cada impossibilidade, fiquemos com as mais sérias. Quarenta dias e quarenta noites de chuva não são suficientes para suplantar os mais altos picos da terra. Em escala global cobriria talvez um metro. Isso, em uma análise otimista. Os sinais de um dilúvio global estariam por toda a parte. Fósseis e restos de vida seriam facilmente identificados. De onde veio e para onde foi a água do dilúvio? Surgiu e desapareceu misteriosamente? Como explicar o fato de civilizações que já estavam de pé não terem sido destruídas como os egípcios, indianos, chineses, povos pré-colombianos? Monumentos de cinco mil anos continuam em pé no Egito e não há sinal de água em nenhuma de suas câmaras. Qual milagre teria feito uma redoma sobre as edificações?

Para trazer a história para a explicação racional é importante lembrar que o dilúvio bíblico não ganharia um Oscar por roteiro original. O mito de um dilúvio existe em milhares de culturas isoladas. É a forma que os povos encontram para justificar as mazelas. Sabe-se que o Velho Testamento é uma compilação de histórias orais e é possível encontrar fatos que pertencem a outras mitologias. É simples: ao longo do tempo, o povo hebreu foi expulso de sua terra, esteve em cativeiro, morou muito tempo em terra estranha. Em todos esses lugares, agregou mitos à sua própria história. A lenda do dilúvio bíblico foi tomada por empréstimo e aperfeiçoada do épico sumério de Gilgamesh, considerado o mais antigo texto escrito pelo homem. Os hebreus tomaram conhecimento da obra durante a estada no cativeiro babilônico. Na narrativa suméria, os deuses decidem intervir com um dilúvio em retaliação aos homens, que estariam incomodando demais as divindades. Tem todos os componentes: revelação divina, chuva, barco, animais, uma família apenas salva.

Especula-se que o texto bíblico teria um sentido simbólico: os quarenta dias e quarenta noites seriam uma alusão aos quarenta anos de cativeiro babilônico. Tudo isso fincado sobre uma tragédia real, mas de proporções infinitamente menores. É uma bela construção literária, com suas contradições e limitações. Considerá-la um fato histórico literal é desconsiderar todas as evidências. É afogar sobre as águas o bom senso e a lógica.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 04/03/2012
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