DDD - Diário de Derrotas [23]

00h01m

Meus planos de comprar a "janta" acabaram de ir à bancarrota: assim que desci da lotação, a padaria fechou as portas. E eu odeio sextas-feiras. Sextas-feiras, além de despertarem a parte alegre de uma sociedade que se força a qualquer custo a "curtir" depois de ter passado a semana inteira com a cara de cu amarrada, fazem com que tudo que é já é ruim seja piorado.

Há a opção de pagar trinta reais numa pizza com Coca-Cola.

O que mais tem ao meu redor é pizzaria.

Mas parei de comer pizza depois que reparei minha barriga ganhava banha depois de uns dois ou três pedaços.

Além da azia. E, principalmente, do preço.

Caminho até em casa, contando com a possibilidade de que alguém tenha feito comida, ou comprado algo. Qualquer coisa. Só tenho fome e não quero gastar.

00h23m

Cheguei em casa agora há pouco, depois de quase 18 horas fora dela, e já estou querendo morrer: o macarrão que jantei ontem está azedo, e o leite que abri pela manhã também. Pela tarde, eu havia comprado uns pães perto do trabalho, e essa foi a minha sorte.

Comi tais pães - os dois que sobraram - bebendo um suco deixou que o fundo da jarra cheio de pó.

Não quero nem imaginar a azia que isso vai me dar.

Mas ainda tenho fome... Mesmo depois de ter comido dois pães que são um centímetro maiores do que uma bisnaguinha convencional.

00h35m

Estou com o telefone em mãos; havia ligado para a pizzaria mas no meio do atendimento mudei de idéia e resolvi economizar um pouco de dinheiro e saúde.

O jeito é encher a barriga de água morna e ir dormir pra esquecer a vida.

03h50m

Estou indo dormir agora. Passo todos os dias da semana clamando por uma conjuntivite ou qualquer coisa que me mantenha deitado dias a fio sem ter meu salário roído por descontos, e no dia que posso dormir até tarde, simplesmente não consigo.

Coloco o relógio pra despertar às dez e durmo.

09h20m

O telefone toca, me tirando de sonhos esquisitos.

O telefone toca, ao longe, insistente, e ninguém atende.

Eu conto que ele vai parar de tocar.

Eu conto que o toque que toca é o último toque.

Mas sempre vem um toque subseqüente.

E o alarido desse aparelho é alto, estridente.

Irritante.

Não queria, não em pleno sábado, levantar da cama pra me indispor.

Não queria que o meu primeiro pensamento de um sábado fosse "caralho", "filho da puta", "vida de bosta", "inferno da puta que pariu", "demônio", "desgraça", "diabo" e afins; juro que não queria.

Então eu me levanto, dou uma olhada pela casa e só há meu irmão dormindo; minha mãe e meu irmão caçula não estão em casa.

A porta está arreganhada pra qualquer um que vem da rua entrar de boa e levar o que quiser.

A televisão está ligada, e ninguém além de uma aranha que chamo de Gertrudes está assistindo.

A maldição continua tocando.

Atendo.

"Chamada a cobrar. Para aceitar, continue na linha após a identificação".

Parece piada essa porra...

09h24m

Acabei de colocar a cabeça no travesseiro, já mal-humorado pra caralho, e o telefone toca.

Toca.

Toca.

Toca.

Tiro a desgraça do gancho com um "Quem é o filho da puta?", como se tivesse falando com alguma Divindade que pudesse me elucidar tal questão. E é claro que a pessoa do outro lado da linha ouviu.

- Alô?

- Rafa, sua mãe tá aí.

Tinha que ser os parentes agregados dela...

- Não.

- Onde ela foi?

- Eu acabei de acordar com esse telefone do caralho, não sei.

- E ela demora pra voltar?

Eu fico quieto, naquele segundo que cabe mil pensamentos, se é que alguém me entende.

- E como é que eu posso saber? - Devolvo a pergunta, já visivelmente (?) sem paciência.

Desligo, arranco os cabos e volto pra cama.

Só que minha mãe se esqueceu de levar o celular, e agora é ele que está tocando uma música irritante e alta.

Vou até ele e arranco a bateria. Volto pra cama, pela terceira ou quarta vez.

09h45m

Não consigo pegar no sono e tenho fome, mas nem forças pra me arrastar até a cozinha eu tenho.

Pego no sono.

10h00m

O celular desperta. Coloco pra despertar dali uma hora e volto a dormir.

10h20m

Essa criança, cara... Essa criança poderia ser atacada por um pitbull agora. Ser arrastada por uma Hayabusa. Passar um final de semana na casa dos Nardoni.

Esse diabo dessa criança do inferno poderia estar em qualquer lugar do planeta, mas ela tem que estar na porta do meu quarto sem porta falando alto e perguntando pras pessoas que estão na sala se estou dormindo, sendo que ele pode me ver "dormindo".

E minha mãe e a sobrinha agregada dela que é mãe desse moleque do cão estão tentando conversar alguma coisa "séria" (provavelmente a fulaninha tá pedindo dinheiro emprestado, como sempre) e o fedelho não pára de interromper a conversa e de gritar, de falar altíssimo, e de ligar a televisão e desligar toda hora com um volume além do normal.

Elas chamam a atenção dele de cinco em cinco segundos, falando que tem gente dormindo, mas não falam com firmeza suficiente - não estão se importando, mas sim fingindo que se importam. Por que se importariam? Se refestelaram a semana todinha no sofá, enchendo o cu de chocolate e assistindo programas de fracassados que sofrem uma "reviravolta" na vida porque um apresentadorzinho resolveu presenteá-los com uma nova dentadura ou com uma mecha californiana.

Então eu vou me retorcendo todinho na cama, criando uma úlcera por causa de algo que eu não precisaria passar se as pessoas tivessem pouco mais de três neurônios funcionando. Até que não aguento:

- VÃO TOMAR NOS SEUS CUS, CAMBADA DE FILHA DA PUTA! NEM NA PORRA DE UM SÁBADO EU TENHO PAZ NESSE CARALHO DE LUGAR.

Silêncio.

11h00m

Acordo com o celular despertando.

E o pior de tudo é saber que mais tarde já virá a camarilha do meu irmão que está dormindo; uma cambada de adolescentes virgens, fissurados em videogame e mangá, que aparentemente não nutrem interesse algum por mulheres, e que, definitivamente, não nutrem apreço nenhum por um bom banho.

Aí o que acontece é que está calor, o quarto deles é naturalmente sem ar, e fica aquela cambada sentada, suando parada, com a testa brilhando, oleosa, com os pés pretos, com bafo de merda, suando e suando diante de desenhos retardados que nunca dão em porra nenhuma, com um ventilador pequeno soprando um bafo de cu sem lavar janela afora, algo que me impossibilita de trazer qualquer pessoa em casa sem ficar o resto da vida com vergonha alheia de mim mesmo.

12h28m

Já era pra eu estar no Centro, comprando um shape, almoçando, indo no Bloco de Pedra e depois indo pra Paulista andar de skate e tentar ser feliz por pelo menos uns 30 minutos da minha vida, contudo, como o dia começou pessimamente mal, já duvido que qualquer coisa possa salvá-lo, e que qualquer coisa que eu tentar fazer com esse meu estado de espírito será um verdadeiro catalisador de pensamentos negros.

Tá foda, cara, tá foda pra caralho essa porra...

03/02/2012 – 12h30m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 03/03/2012
Reeditado em 03/03/2012
Código do texto: T3532637
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