A Aposta
O brasileiro adora uma piadinha. Você sabe, aquela brincadeira marota com o colega. Ninguém é imune a um apelido ou um comentário risonho por nossas terras. E como todo hábito enraizado em um indivíduo, ele começa em casa. A sólida instituição Tio nos prepara desde cedo para a inevitabilidade de um dia ser o alvo de uma zuerinha.
O rito de passagem da infância para adolescência é como lidamos com apelidos que nos incubem. E quando protegido e amplificado pela turma dos amigos, como lidamos com o poder de caçoar alguém. Uma linha tênue que pode ensinar na marra a se defender ou deixar traumas que graduam serial killers.
Do jardim de infância ao fumódromo que invariavelmente mantém um jardim de bitucas, o ato de caçoar o próximo se perpetua. E evoluí entre seus praticantes majoritários: os homens.
Segundo ditados populares, o homem emocionalmente nunca deixa a 5a série. Ele só disfarça que passou de ano na presença do sexo oposto.
No escritório Medeiros e Medeiros Contabilidade estava perfeitamente inserido nesse contexto. E tinha como funcionário e rei o analista sênior Almir. Coroado o soberano das brincadeiras. Sempre um passo a frente nas tiradas, nos apelidos, nas piadas. Com um sorriso de bigode e olhos apertados que sempre antecediam seu próximo ato.
Era um menino preso em uma cabeça já calva e uma chopa protuberante de um cinquentão fã de coraçãozinho bem temperado e cerveja no copo americano.
Com o seu digitar de quem cata milho e separa feijões que irão para a panela, era capaz dos mais constrangedores posts nos perfis de Facebook esquecidos no limbo do log on.
Sua reputação era conhecida por todos os cantos da empresa. Era querido e temido. Engraçado e maldoso. Na corda bamba da vida de um piadista nato.
Até a chegada de um e-mail de boas vindas. E com ele, um concorrente.
Foi Cibele, a RH e secretária, que levou o jovem recém chegado para dar uma volta pela empresa - o já formalizado Tour da Vergonha.
Silas chegou na Medeiros e Medeiros destilando sorrisos e abraços laterais. Mesmo quando seu crachá enroscou com o de seu Carlos, impiedoso e mal humorado sócio-diretor financeiro, o recém-chegado mostrou jogo de cintura e nem sequer corou. Até arrancou uma risada da Regina, que vivia triste por um ex-namorado que a trocou por sua manicure.
Ele estava tranquilo. “Tranquilo demais...”, farejou Almir.
Era hora de testar do que esse nariz que vestia uma camisa social era capaz.
Almir consultou seu vasto repertório e decidiu aplicar uma das suas clássicas. A infalível. O convidou para ir ao cartório. Perfeita para o novato, sempre solícito, contagiado pela vontade de mostrar serviço e conquistar a confiança dos colegas.
Com as sobrancelhas arqueadas em dúvida, Silas respondeu.
- Err... Mas fazer o quê no cartório?
Com um meio sorriso, Almir tomou ar para arrematar a piada e mostrar para todo departamento quem mandava. Mas antes que de seus lábios saíssem a resposta, Silas emendou, em seguida:
- Passar o seu cu pro meu nome?
Almir ficou sem reação. Paralisado, tentando encontrar palavras enquanto as baias sacudiam em gargalhadas. Era um riso recheado de surpresa e satisfação. Uma grata surpresa. Uma lenda tinha sido atingida. Nunca na história da Medeiros e Medeiros alguém tinha conseguido calar o profissional Almir em uma piada.
Silas sabia. Ou ele previu a piada e conseguiu rebatê-lo? Seja qual fosse a resposta. Ele era rápido e afiado na resposta.
O rei tinha encontrado um monarca à altura.
As semanas seguintes foram marcadas por intensas batalhas. Piadas, comentários irônicos, apelidos com dimunitivos, e-mails falsos. Os dois concorrentes perdiam o sono e a produtividade pensando em novas maneiras de dar a última piada.
Mas Almir desde o começo sabia a verdade. O mundo imaturo da contabilidade era pequeno demais para eles dois.
Resolveriam suas diferenças com um desafio. Um duelo.
Os termos da disputa foram acordados na presença de Cibele, que juramentou seu testemunho com um pesar. E um lado para torcer.
Quem ficasse uma semana falando com o mal-humorado e poderoso seu Carlos usando voz fofa de namorada ganhava um prêmio: a demissão do outro. 5 dias úteis apresentando relatórios, ligando no ramal, pedindo contratos e batendo contas usando apelidos como “tchutchuco”, “lindet” e “gordinho do pai” para a pessoa com a autoridade de demiti-lo em uma canetada.
No começo era uma apelido tímido ali, com um sorriso amarelo em seguida. Mas a disputa ficou acirrada. E os concorrentes começaram a pegar pesado.
- Alô? Seu Carlos? Oi tchutchuquinho... Quando o senhor puder, vamos bater aquelas notas fiscais de abril? Obrigado viu, meu gordinho lindo.
- Bom dia. Bela gravata, seu Carlos. Belo terno, belo tudo. Dia dos namorados está logo aí... Assim você dificulta minha vida, seu lindo.
- E para resumir, como vocês podem ver, os números indicam uma evolução de 12% em relação ao ano passado. Alguma dúvida? Sim, meu pequerrucho, pode perguntar.
Era o final de expediente de uma segunda-feira chuvosa quando a secretária Cibele anunciou o inevitável. Dias de tantas frases e apelidos de carinho inevitavelmente daria um resultado. Restava saber o veredicto.
- O senhor Carlos quer falar com os dois. É pra ir na sala de reunião.
Os dois caminharam lado a lado pelo corredor, rumo ao fim. Olhares apreensivos acompanhavam por cima das baías os gladiadores das piadas infantis.
Antes mesmo de baterem à porta, seu Carlos já os mandou entrar.
Perplexidade pouco define a expressão que tomava o rosto dos dois ao abrir a porta.
A sala estava a meia luz, com velas roliças vermelhas completando a ambientação. Uma toalha branca de linho cobria a mesa retangular da sala. O prosseco suava em um balde de gelo prateado. A voz macia e levemente rouca de Sade cantava “smooth operator”, que prenchia a sala de sedução.
Era dia 12 de junho.