A Formiga
A Formiga
Eu sou uma formiga. Tive pai e mãe formigas. Quer dizer, tenho. Não nos falamos tanto em virtude de... vejamos, ora, a gente nunca sabe quando é o momento certo. Digo, para tudo na vida. Para qualquer coisa. Eu sei quando é o momento certo de tomar um copo d‘água. E de dormir. Para outras coisas me perco e, nesses momentos, me sinto mais um morcego fazendo um vôo de morcego nessa estrutura toda. Digamos, o formigueiro.
A dona Clotilde do quarto andar volta e meia tropeça. Nem os porteiros sabem o motivo. Ela sempre ostenta um ar de alegria vacilante mesclado a um olhar atarantado. Seu Jéferson, do sexto, assobia e usa boné.
Você já deve ter me visto. Lembra-se daquela tarde em que você reparou ligeiramente numa fila de formigas andando num muro de tijolos aparentes e, de repente, uma delas caiu? Essa sou eu.
Tenho sido esse tipo de formiga por mais de meio século.
Ontem mesmo, na plataforma de embarque do metrô Ipiranga, uma menina linda, de mini saia, olhou-me como se eu fosse menos do que uma formiga. Coitada. Ela ainda não entendeu.
A vida no formigueiro é relativa. Muitos de nós estão buscando, alguns já encontraram, outros jamais encontrarão, “jamais” soa forte como uma trombeta e embute a um só tempo mentira e verdade. Mas expressa alguma coisa, é uma espécie de vírgula além do “jamais” sinalizando: olha, é bom você ficar esperto(a). O que se vê de formigas desatentas desaparecem da noite para o dia, todos os dias...
Temos uma coisa em comum, eu e você. Sei exatamente como você me imagina. Vou te dar a explicação: “Quando ouvimos a palavra formiga, por exemplo, vem-nos ao consciente a imagem de uma formiga e com essa imagem ficamos cientes de todas as suas características, peculiaridades e finalidade. Se pensássemos por palavras, teríamos que usar todas as que fossem necessárias para expressar tudo isso e, evidentemente, não conseguiríamos pensar.” O único senão desta explanação, no meu caso, fica por conta da palavra “finalidade”. Afinal, qual é a finalidade de uma formiga? Inútil supor que a resposta necessite de um tratado ou uma enciclopédia para ser formulada, já que ela se resume em apenas duas palavras: ser feliz.
Dona Clotilde, do quarto andar, não apresenta a característica da felicidade e ninguém ainda descobriu por que ela tropeça tanto. Seu Jéferson, do sexto, volta e meia faz piadinhas sobre futebol com os porteiros e vive assoviando. Pouco se sabe sobre a extensão do seu repertório. Já o presidente Hugo Chavez, que queria dois andares inteiros do hospital Sírio Libanês para o seu tratamento, está há léguas e léguas de saber a sua real condição. Aliás, sinto informar, todo o formigueiro não passa de um vasto programa de graduação, enquanto para uns cachoeiras, para outros labaredas. E há os estágios intermediários.
Já lhes falei do Pantera? Era o seu apelido. Na minha jornada tive a honra de conviver com dois maestros. Algumas coisas vieram aos pares. Bem, eles conheceram o Pantera. E ambos atestam que a maneira como ele tocava era celestial. Que ele chegava no estúdio com seu instrumento de sopro e não era preciso explicar nada. Ele antevia e soprava maviosamente. Ouvi-lo, diziam, beirava uma hipnose. Morreu na penúria, anônimo, e ainda assim imprimiu sua marca. Algumas formigas são especiais.
Formigas vem e vão, isso chega a ser uma regra matemática. E todas, nalgum degrau, fazem o mesmo questionamento do robô do Blade Runner – quanto tempo ainda tenho e o que estou fazendo aqui. Essas questões, às vezes, surgem sob a forma de olhares mudos, não raro quando a noite cai.
De tempos em tempos alguém se apieda de nós e aparece por aqui, a fim de nos ensinar o caminho. Da última vez foi um homem. Diziam que era Deus, Filho de Deus, outros dizem ser nosso Irmão mais velho, outros saem correndo, o formigueiro sempre foi um caldeirão de opiniões conflitantes e te digo, isso é uma chatice, se concordássemos mais em alguns pontos haveria mais calmaria e harmonia, duas coisas que eu prezo muito.
A vinda dele foi um marco, pois desde aquela época existem formigas aflitas, desorientadas, danadas, revoltadas, prostradas, você nunca viu uma formiga andando em círculos?
Esse homem andava em linha reta. Ele sabia o que estava fazendo. A multidão o cercava e um dia trouxeram um sujeito acamado, que não levantava de jeito nenhum, tiveram de passar a cama pelo telhado. Bastou Ele pousar os olhos no tipo para dizer: seus pecados estão perdoados. Foi então que um bando de acadêmicos pululou, gritando: quem é você para perdoar pecados? E Ele deu uma resposta que até hoje me intriga - ora, o que vocês acham mais complicado: dizer seus pecados estão perdoados ou levanta-te e anda?
Bem, a verdade é que o sujeito levantou da cama e saiu andando. Quer dizer, a formiga.
(Imagem: autoria desconhecida)
A Formiga
Eu sou uma formiga. Tive pai e mãe formigas. Quer dizer, tenho. Não nos falamos tanto em virtude de... vejamos, ora, a gente nunca sabe quando é o momento certo. Digo, para tudo na vida. Para qualquer coisa. Eu sei quando é o momento certo de tomar um copo d‘água. E de dormir. Para outras coisas me perco e, nesses momentos, me sinto mais um morcego fazendo um vôo de morcego nessa estrutura toda. Digamos, o formigueiro.
A dona Clotilde do quarto andar volta e meia tropeça. Nem os porteiros sabem o motivo. Ela sempre ostenta um ar de alegria vacilante mesclado a um olhar atarantado. Seu Jéferson, do sexto, assobia e usa boné.
Você já deve ter me visto. Lembra-se daquela tarde em que você reparou ligeiramente numa fila de formigas andando num muro de tijolos aparentes e, de repente, uma delas caiu? Essa sou eu.
Tenho sido esse tipo de formiga por mais de meio século.
Ontem mesmo, na plataforma de embarque do metrô Ipiranga, uma menina linda, de mini saia, olhou-me como se eu fosse menos do que uma formiga. Coitada. Ela ainda não entendeu.
A vida no formigueiro é relativa. Muitos de nós estão buscando, alguns já encontraram, outros jamais encontrarão, “jamais” soa forte como uma trombeta e embute a um só tempo mentira e verdade. Mas expressa alguma coisa, é uma espécie de vírgula além do “jamais” sinalizando: olha, é bom você ficar esperto(a). O que se vê de formigas desatentas desaparecem da noite para o dia, todos os dias...
Temos uma coisa em comum, eu e você. Sei exatamente como você me imagina. Vou te dar a explicação: “Quando ouvimos a palavra formiga, por exemplo, vem-nos ao consciente a imagem de uma formiga e com essa imagem ficamos cientes de todas as suas características, peculiaridades e finalidade. Se pensássemos por palavras, teríamos que usar todas as que fossem necessárias para expressar tudo isso e, evidentemente, não conseguiríamos pensar.” O único senão desta explanação, no meu caso, fica por conta da palavra “finalidade”. Afinal, qual é a finalidade de uma formiga? Inútil supor que a resposta necessite de um tratado ou uma enciclopédia para ser formulada, já que ela se resume em apenas duas palavras: ser feliz.
Dona Clotilde, do quarto andar, não apresenta a característica da felicidade e ninguém ainda descobriu por que ela tropeça tanto. Seu Jéferson, do sexto, volta e meia faz piadinhas sobre futebol com os porteiros e vive assoviando. Pouco se sabe sobre a extensão do seu repertório. Já o presidente Hugo Chavez, que queria dois andares inteiros do hospital Sírio Libanês para o seu tratamento, está há léguas e léguas de saber a sua real condição. Aliás, sinto informar, todo o formigueiro não passa de um vasto programa de graduação, enquanto para uns cachoeiras, para outros labaredas. E há os estágios intermediários.
Já lhes falei do Pantera? Era o seu apelido. Na minha jornada tive a honra de conviver com dois maestros. Algumas coisas vieram aos pares. Bem, eles conheceram o Pantera. E ambos atestam que a maneira como ele tocava era celestial. Que ele chegava no estúdio com seu instrumento de sopro e não era preciso explicar nada. Ele antevia e soprava maviosamente. Ouvi-lo, diziam, beirava uma hipnose. Morreu na penúria, anônimo, e ainda assim imprimiu sua marca. Algumas formigas são especiais.
Formigas vem e vão, isso chega a ser uma regra matemática. E todas, nalgum degrau, fazem o mesmo questionamento do robô do Blade Runner – quanto tempo ainda tenho e o que estou fazendo aqui. Essas questões, às vezes, surgem sob a forma de olhares mudos, não raro quando a noite cai.
De tempos em tempos alguém se apieda de nós e aparece por aqui, a fim de nos ensinar o caminho. Da última vez foi um homem. Diziam que era Deus, Filho de Deus, outros dizem ser nosso Irmão mais velho, outros saem correndo, o formigueiro sempre foi um caldeirão de opiniões conflitantes e te digo, isso é uma chatice, se concordássemos mais em alguns pontos haveria mais calmaria e harmonia, duas coisas que eu prezo muito.
A vinda dele foi um marco, pois desde aquela época existem formigas aflitas, desorientadas, danadas, revoltadas, prostradas, você nunca viu uma formiga andando em círculos?
Esse homem andava em linha reta. Ele sabia o que estava fazendo. A multidão o cercava e um dia trouxeram um sujeito acamado, que não levantava de jeito nenhum, tiveram de passar a cama pelo telhado. Bastou Ele pousar os olhos no tipo para dizer: seus pecados estão perdoados. Foi então que um bando de acadêmicos pululou, gritando: quem é você para perdoar pecados? E Ele deu uma resposta que até hoje me intriga - ora, o que vocês acham mais complicado: dizer seus pecados estão perdoados ou levanta-te e anda?
Bem, a verdade é que o sujeito levantou da cama e saiu andando. Quer dizer, a formiga.
(Imagem: autoria desconhecida)