DDD - Diário de Derrotas [22]

06h40m

Não.

06h50m

Hoje não.

07h00m

A noite é que passou rápida demais ou eu é que estou em petição de miséria? Já? Já é sábado? Porque este cansaço vem da sexta... Não, ainda é terça. E preciso levantar imediatamente pra terminar de fazer a barba. Terminar porque - por causa da tamanha preguiça que tenho de tal atividade, e da procrastinação de semanas que levo para executá-la - seis horas atrás só raspei metade do rosto.

O pior de tudo é que antes de levantar da cama e ter concluído qualquer raciocínio, já estou com o celular na tela do Facebook.

Minha garganta está seca e esquisita; é como se um gato do mato tivesse passado a noite sapateando com as garras de fora dentro dela.

Devo ter roncado muito.

E hoje é só a terça-feira da terceira semana dessa rotina dos próximos setecentos dias.

07h05m

Se depois de ter passado 17 horas fora de casa não encontrei comida ao chegar caindo de fome, é claro que durante a madrugada nada brotaria na geladeira e nos armários.

Raspo um resto de Neston da lata - inclusive aqueles farelos que teimam em ficar na reentrância da tampa -, misturo com leite, açúcar e com uma colher de um suplemento que paguei o olho da cara - mesmo dividindo o valor com um amigo - e que só acabei usando três vezes.

A esperança é de que isso me cause um revertério enquanto termino a barba e eu não precise ficar sambando o dia inteiro na cadeira do trabalho.

07h25m

Tentei forçar umas flexões e só consegui dez, e agora estou com a cara num tapete que precisa ser varrido, sem forças pra levantar, olhando uma barata já estorricada debaixo do sofá, com quase inveja dela por não precisar pegar o trem daqui a pouco.

Eu já deveria estar saindo de casa, por falar nisso.

07h58m

Estou no ponto e a lotação surgiu no horizonte, e todas as pessoas, como sempre, já começam a se aglomerar pra ver quem entra primeiro e, quem sabe, conseguir um lugar sentado. Eu, aliás, sou uma dessas pessoas; minha ambição do momento é arranjar uma concussão ao pegar no sono e ficar batendo a cabeça no vidro durante as curvas e lombadas.

08h16m

Bom, consegui lugar na escadinha da porta de trás, o que já é alguma coisa na hora de descer. O que enche o saco é ter que ficar saindo pros outros saírem, e voltar antes que o motorista me feche a porta no nariz ou nos tornozelos.

08h40m

Estou numa posição gostosa; tão gostosa que não consigo mover meus pés, e tive que tirar a mochila da frente do corpo - e deixá-la em cima do pé dos outros - pra conseguir voltar a respirar. Estou encoxando um baixinho bundudo e atrás de mim, como sempre, há um negão. Contanto que o ar-condicionado continue nesse ritmo siberiano, eu não me importo com mais nada.

...Que vida!

09h13m

Mulheres... (Aqui cabe uma onomatopéia de suspiro).

09h25m

Consegui chegar, e hoje é um dia daqueles que o espelho não salienta minha derrota - a única vantagem em fazer a barba. Claro, isso só no primeiro dia, porque no segundo já começam a aparecer aquelas bolinhas amarelas causadas pela irritação da lâmina que me dão um ar andrajoso e sofrível.

12h35m

Quando assumi esse cargo pensei que nunca conseguiria dar conta de tudo, e hoje me impressiono como a coisa flui naturalmente sem a quantidade de empecilhos que no início me fizeram quase desistir de tudo. Agora, já me vejo livre de quase tudo o que eu tinha que fazer por hoje. Só falta entregar as guias pros advogados, almoçar, ir ao Fórum Central, morrer de calor, morrer de tédio, morrer de azia, ir pra faculdade e morrer de fome e azia e sono, depois pegar o trem e querer morrer com o barulho de uma sociedade que tem uma necessidade doentia de não manter a boquinha caladinha, torcer pra lotação não estar saindo quando estou descendo as escadas rolantes, torcer pra arranjar um lugar sentado nela, esperar os dez minutos até que ela consiga sair do terminal de ônibus, mais uns vinte até o ponto que desço, mais uns dez minutos andando até em casa, mais querer matar pelo menos duas vezes cada um dos meus irmãos e minha mãe junto, mais tomar um banho e bater uma punheta e comer alguma coisa e entrar na internet para depois, finalmente, dormir umas cinco ou seis horas pra começar tudo de novo. A parte boa disso tudo é que eu mal posso esperar pra começarem os trabalhos...

...Daora!

13h30m

Estou no Metrô, a caminho do Vitrine, na Rua Augusta. A ocasião de eu estar indo lá almoçar e da situação que me encontro neste vagão me lembra uma frase que li, do querido Barnabé: Há mais mulher gostosa no Metrô do que arroz em marmitex.

É uma frase de pedreiro, mas não deixa de ser contundente e veraz; por exemplo, à minha frente há uma loira de vestido, de sandáliazinha, de olhos verdes, com beição de negra e traços germânicos carrancudos; atrás, uma coisinha de shortinho jeans desfiado e de cabelos castanhos com aparência - que ouso arriscar ser proposital - de sujos e com cara de parasita, coisa que dá um charme a mais na mulherada; ao lado, uma baixinha de jeans, estilo roqueirinha, do bundão largo e branco.

Falo como um tarado minucioso, mas faço essas análises quase tão rápido quanto o Excel faz uma soma ao selecionarmos dois quadradinhos emparelhados. Tenho plena ciência de que mesmo que se eu pudesse ou quisesse que acontecesse alguma coisa, nada aconteceria, logo, de nada adianta ficar cobiçando ou caçando assunto/olhares.

Mas que elas são umas delícias que não possuem uma mísera centelha de noção do que causam nos homens, isso são.

14h45m

Estou no ponto de ônibus, mas ele não vem. Preciso chegar logo na porra do Fórum, senão vão ficar desconfiando que fico de passeinho pela cidade.

15h15m

O que eu vim fazer aqui é simples: retirar um comprovante de Levantamento Judicial. Tudo o que o cara tem que fazer é pegar um número que forneço, fazer busca num programa no estilo do MegaData e imprimir a folha.

Tem cinco pessoas na minha frente.

Não na minha frente, a espera é em bancos confortáveis, até.

O problema é que as duas pessoas que estão sendo atendidas, uma mulher e um homem, estão, cada um, com um processo gigantesco; a mulher, por exemplo, está procurando algum comprovante, vasculhando folha por folha, sem sucesso algum - e ela não chegou nem na metade do calhamaço; o homem, por sua vez, apresentou alguma coisa cabeluda que fez o funcionário da egrégia instituição sumir por uma portinha e não voltar nunca mais.

O problema, na verdade, é que durante o almoço o fio do meu fone de ouvido - que deve ter uns dois metros de comprimento, essa porra - enroscou na quina de uma mesa - algo que quase me fez derrubar o prato - e agora não quer funcionar.

Ótimo.

Ótimo.

Ótimo.

E ótimo!

15h30m

O funcionário, já entediado com a busca inútil da mulher, espichou pra frente o pescoço de uma maneira que não poderia ser outra coisa no campo de visão dele: mulher gostosa. Como quem não quer nada, faço o mesmo, e do outro lado não sei se há uma mulher, mas há uma bunda linda e arrebitada numa calça social cinza; a marca da calcinha em alto relevo.

A mulher que está diante dele é bem boa também.

Essa outra, da bunda, que estava do outro lado, veio em nossa direção, depois de terem apontado pra cá, como que indicando que o local que ela procurava fosse este. E da mesma forma que ela se arrebitava do outro lado pra fazer perguntas, ela faz aqui... Na minha frente.

...Mãe de Deus!

15h32m

Essa morena arranjou lugar ao lado de uma velha ranzinza num banco que recém acabei de deixar vago. O cara que levantou - e que eu ocupei o lugar - é atendido rapidamente, e já se levanta, fazendo com o próximo da fila também se levante. Concomitantemente, apareceu uma dessas trintonas solteiras, advogada séria, de pernas grossas, vestido preto e salto alto, com ares de quem está perdida; ao aparentemente reconhecer o que procurava, investiu no banco que acabara de ficar vago, e de tão distraída de confirmar suas suspeitas sobre o local que procurava ser este com o velho ao lado, sentou com as pernas abertas, e com elas assim ficou durante longos três segundos, e, depois, tendo percebido o deslize, cruzou-as, mas de uma maneira vagarosa e sensual; por fim, olhou pra minha cara; disfarcei, olhando uns madeirites que escondiam alguma obra que nunca fica pronta.

15h40m

Nada mudou. Ela continua com o mesmo cruzamento de pernas, mexendo no último iPhone lançado, e eu disfarço o calor que sinto olhando o bico do salto que pende, que jaz no ar, me perguntando o porquê de algo tão babaca ser tão lascivo na minha concepção.

Devo ter assistido muito filme pornô na adolescência.

Ou mesmo depois de adulto.

Tanto faz.

16h00m

Estou subindo a Brigadeiro no ônibus mais abafado do Oeste.

Querendo cerveja gelada na beira de uma piscina.

Clamando pelo Inverno.

Torcendo a ponta do fone pra lá e pra cá a fim de fazê-lo voltar a funcionar.

Inutilmente.

Já me imaginando sendo assaltado por conversas bestas com semiconhecidos.

Já me imaginando no trem, mais tarde, no auge da histeria do proletariado, querendo um lança-chamas pra calar as bocas todas.

Só querendo calor se fosse num pomar, com montanhas ao fundo, ar puro, mel puro e fresco recém retirado de Langstroth's impecáveis, mergulho num riozinho raso e cristalino, vacas mugindo e mosquitos mil zunindo, fugindo do estrume e blablablá...

18h00m

Incrível como escrever faz com que o relógio corra: comecei a batucar isso depois de ter feito algumas coisinhas rápidas, e me surpreendi ao olhar para o bendito relógio.

18h15m

Estou um pouco extasiado/preocupado com a "repercussão" do último texto que escrevi. É como se eu tivesse despejado sangue demais... A ficção refletindo na realidade? Bom, o importante é saber que atingi as pessoas que eu gostaria de ter atingido. Sei lá.

18h30m

Estou diante de torradas com manteiga e pingado. Um pingado bem ruim que fiz, diga-se de passagem. Essa merda que vou comer vai tapear a fome por uns sessenta minutos e culminar em azia. Mas me sai infinitamente mais barato do que comprar um pão de queijo e uma latinha de Coca-Cola que acabarão dando na mesma coisa. Nem sei do que estou reclamando, afinal de contas.

18h47m

Estou no Extra, irritadiço. Só vim comprar cuecas. Porque eu sempre compro cuecas, e elas sempre desaparecem, ficando sempre as mesmas, que já estão desbotadas e gastas e manchadas, pedindo arrego já... E só tinha eu e essas duas mulheres na fila do caixa daqui de cima, desse andar que não tem nada pra comer; só frivolidades pro lar e vestuário. E sempre, sempre, sempre tenho que me indispor nesse maldito lugar. O sistema caiu. Caiu, caiu depois que a songamonga errou a senha do cartão do marido por três vezes.

...Às vezes é sempre pedir muito pedir pouco.

19h22m

Estou na sala de aula, que na verdade é um mini-auditório. O ar-condicionado não está ligado, e como sempre, as pessoas falam demais. Eu, já imagino que aqui não será diferente de todos os outros onze ou doze anos que passei na escola: começarei uma duas amizades depois de uns dois meses, e terminarei o curso sendo amigo de umas seis pessoas, quando muito. Talvez não; talvez os trabalhos em grupo forcem alguma coisa. Ou façam o favor de me reprimir mais ainda. Sei lá, sei lá, nem comprei caderno ainda, nem sei qual aula que vai rolar - não sei de porra nenhuma.

19h50m

A aula começou e tenho azia e sede. Meu problema se resolve com o Eno que tenho na mochila e com o bebedouro que tem logo ao lado da porta, lá fora. Mas ainda faltam 70 minutos pro intervalo...

21h35m

Agora que já enchi a pança d'água e já senti a delícia do efervescente esfriando a lava do meu estômago, estou com vontade de mijar, e não é pouca. E ainda faltam 55 minutos pra aula acabar, e eu é que não vou querer saber de perder tempo indo ao banheiro aqui! Ou seja, só mijarei lá pelas onze e meia da noite, em casa ou, caso a coisa fique triste demais, nalgum muro lá por perto.

21h40m

Encontrei duas pessoas que se parecem um pouco comigo quando o assunto é ter radar pros clichês corporais das fêmeas. Se fosse pra escolher alguém pra fazer amizade, seriam eles.

Não, eu não os suportaria... Devem ter completado a maioridade agora. Devem tirar foto em balada, com um copo numa mão fazendo hang loose com a outra, com abadá de micareta - Deusolivre.

22h30m

Tudo o que eu posso dizer é que finalmente escolhi o curso certo. Talvez seja cedo pra alardear amores por algo que ainda está no começo, mas me sinto IN como nunca me senti em outro lugar que passa conhecimento. É a porra de um bom presságio, caralho!

23h55m

Cheguei em casa tem uns dez minutos e já arranquei um da beliche aos gritos e derrubei algumas tampas de panela. Presumo que eu esteja voltando à velha forma em casa: não ter empatia nenhuma com as necessidades de confraternizações adolescentes ou deliberados acessos de retardo mental de crianças que já possuem discernimento suficiente pra saber que não é certo fazer lambanças fecais e não higienizar os caminhos do cu de forma incorreta, displicente e explicitamente nojenta; descer o tabefe e disseminar o ódio em troca de respeito e sossego, etc.

00h50m

Estou tentando dormir e não consigo. Meu ouvido está fazendo um "piiiiiiiiiiiii" insuportável.

00h59m

...PIiii.

28/02/2012

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 28/02/2012
Reeditado em 29/02/2012
Código do texto: T3525708
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