INTERROGAÇÕES INFANTIS

Os textos a seguir foram extraídos de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptados para o Recanto das Letras.

INTERROGAÇÕES INFANTIS

1 - NOSSA MÃE PIA

No anoitecer dos sábados ou nas manhãs dos domingos, descíamos o morro, a família inteira, pras rezas na capelinha, conforme ficou dito em texto anterior. Meu irmão mais velho, o José (que Deus o tenha também!), era quem puxava as rezas e os cânticos. Era o capelão, como se dizia.

Como eu gostava de ouvir a cantoria! Lá em cima, no coro, uma boa meia dúzia de mulheres: senhoras e moças, se esgoelavam em tons agudos, abafando o vozerio grave dos homens. Às vezes o som chegava a retinir nos ouvidos, e a capelinha parecia tremer. Lá debaixo, no meio da meninada, eu acompanhava e aos poucos ia decorando as letras e gravando a melodia da maioria deles.

Havia, porém, um cântico, dedicado a Nossa Senhora, que me deixava encafifado. “Virgem Maria, nossa mãe pia, volve teus olhos benignos...” Sem nunca ter ouvido falar em vocativo nem saber que a mesma palavra pode ser verbo numa frase e adjetivo noutra, assumindo significados diferentes, já nas primeiras palavras, a dúvida se instalava na minha cachola:

“Diacho, que cântico mais louco! Quem pia é pinto, coruja, cobra... Como é que o cântico diz que a nossa mãe pia? A minha não pia não. Só fala. E como fala!”

E era assim cada vez que o tal cântico era entoado. E eu, com vergonha de perguntar pros mais velhos, carreguei minhas interrogações durante muito tempo, até aprender que pia não é apenas uma forma do verbo piar, mas pode ser um adjetivo e que significa piedosa.

2 - TIRAR AS MANGAS

Outra coisa que também me deixou intrigado por muito tempo foi o trecho de um canto que aprendi, bem antes de eu ir pra escola, de tanto ouvi-lo dos irmãos mais velhos, que certamente aprenderam da Professora e o cantavam repetidamente pelos caminhos da roça ou mesmo em casa. Ainda hoje eu o guardo quase todo de cor e canto com muita saudade daqueles tempos e sempre com forte dose de emoção. É o poema de Casimiro de Abreu: MEUS OITO ANOS, que começa assim: “Oh que saudades que eu tenho/Da aurora de minha vida”... Uma das estrofes começa dizendo: “Naqueles tempos ditosos, eu ia colher pitangas, /Trepava a tirar as mangas,/Brincava à beira do mar!/...”

“Diacho! Tirar as mangas pra quê?”, pensava eu enquanto cantava, “E tirar como? Tinha que rasgar!”.

Lá pelo meio do pasto havia laranjeiras, pessegueiros, ameixeiras, ingazeiros, pitangueiras, goiabeiras... De vez em quando o papai ou os irmãos já moços traziam bacuparis, frutas-de-macaco, cachos de tucum madurinhos e outros frutos silvestres colhidos pelas capoeiras à beira dos caminhos da roça.

O nó na ideia me vinha pelo fato de não saber que existia, por esses brasis afora, uma fruta chamada manga. Pra mim, no meu escasso vocabulário roceiro infantil, manga era parte do vestuário: manga da camisa, manga do paletó... e nada mais.

Hoje eu sei e repasso, a título de curiosidade, que a manga é uma fruta originária do Sul e Sudeste da Ásia. Introduzida na Europa pelos navegadores portugueses, logo foi levada para outros continentes e hoje é cultivada em grande parte das regiões tropicais e subtropicais do Planeta por ser rica em vitaminas e ferro além de ter outras propriedades alimentares.

O morro da Mangueira, na Quinta da Boa Vista, próximo ao palácio imperial, no Rio de Janeiro, onde fica a Escola de Samba “Estação Primeira da Mangueira”, um dos principais redutos do samba carioca, deve seu nome ao mangueiral ali existente no Século XIX.