Quando Brincar é Acordar
O saldo de uma boa pesquisa é o momento em que ela sai do papel, perde as formas das letras e sua necessidade lógica para se cristalizar, se personificar de maneira tal que você pode encontrá-la na padaria, no posto de gasolina, mas isso em um primeiro momento. Com o passar do tempo, os encontros são mais frequentes, e finalmente, (quem diria) ela está quase em tudo que você vê. Eu tive este privilégio ao pesquisar sobre o pragmatismo social detectado nos primeiros escritos teológicos do conhecido filósofo alemão G.W. Hegel transposto para os hodiernos dias pelo também filósofo e professor da Universidade de Pittsburgh, EUA, Robert Brandom.
Com o propósito de esboçar o tema, veremos rapidamente um pouco do que estes grandes filósofos problematizam. À guisa de introdução, é importante conhecer um termo alemão que é muito presente nos escritos de Hegel. O termo “Geist”, que é geralmente traduzido como “Espírito”, mas que possui diversos significados - conforme o contexto em que aparece - se refere, de maneira geral, ao que podemos chamar e conhecer por “espírito do tempo”, que reúne, por sua vez, diversas manifestações críticas, sensos estéticos de determinado tempo e espaço de uma sociedade. Pensemos: esta reunião inclui religião, legislação, punições, enfim, acordos que são estabelecidos entre os participantes desta cultura ou deste “Geist”.
Mas, será que podemos considerar que uma legislação funciona ou procede em todos os casos da mesma maneira? Tanto o senso comum, quanto o zênite dos preceitos jurídicos hão de concordar: cada caso é um caso. Esta tautologia, no entanto, deve nos assegurar o risco da relativização, uma cultura pode praticar atrocidades seguindo seus mandamentos culturais doutrinários, e esses mandamentos devem ser questionados, naturalmente. Mas então, transfiguremos a questão: o que difere um caso do outro caso?
Neste momento é necessária a introdução de um conceito basilar dessa pesquisa: o de “reconhecimento”. O reconhecimento ou a recognição é uma operação racional que influencia (ou determina, alguns casos) nossos julgamentos sociais, políticos e até jurídicos. Isso deve funcionar mais ou menos assim: quando reconheço outrem, geralmente, o reconheço em um sentido positivo, ou seja, este possui determinadas virtudes que o meu “senso de julgamento” tem uma aptidão intrínseca para lhe conferir algum mérito. Pode acontecer, no ato em que eu reconheço um sujeito, uma série concessões éticas, que não seriam concedidas caso este não portasse qualidades “dignas de meu reconhecimento”. A possibilidade do reconhecimento é dada em limites subjetivos, em linhas invisíveis, embora expressas objetivamente, que vão sendo traçadas em diálogos, em atitudes de toda ordem que visam acordos entre sujeitos.
Voltando à questão do “saldo de uma pesquisa”, acho que alcancei um nível de internalização do tema interessante, que é o do sonho. Esta noite eu sonhei que brincava com um garoto, quando me irritei muito com este e vi, logo em seguida, uma placa que trazia a seguinte inscrição: “a brincadeira é um acordo”. Sim, e por que não haveria de ser? Quando nos irritamos profundamente com alguém ou nos divertimos “paca” com outra pessoa, não estamos estabelecendo acordos éticos ou jurídicos, instantaneamente com as nossas reações? E ainda, em um possível mundo ideal, não poderíamos evitar os desgastes inter relacionais ao conseguirmos estabelecer acordos positivos com as mais adversas demandas circunstanciais? Simplesmente, talvez, ao concebermos o senso de “justiça” como uma forma de “bom senso” e razoabilidade de atitudes éticas positivas que podem ser cambiantes, não estáticas, mas capazes de acordar com variadas concepções de vida. Tais concepções de vida, ao apresentarem respeito pelas individualidades, podem ser reconhecidas e acordadas positivamente em qualquer que seja o espírito do tempo.