Todos os sonhos e muito mais

As paisagens estão ai a espera de quem as veja. Serei eu que as verei? Quando olho não vejo, o veículo passa rápido e estou mais preocupado com o ponto em que devo descer. Então, um risco do verde de um gramado impregna a minha consciência e, durante algum tempo, desvia a minha atenção do objetivo daquela curta viagem.

Acredito ter visto algumas pessoas em cima daquele gramado de praça, quem sabe funcionários da prefeitura, talvez habitantes das margens que fazem da praça a sua moradia. Alguém comenta que são mendigos que dormem na praça, que lavam roupa no lago e deixam-nas secando sobre o gramado. “O prefeito prometeu que ia dar jeito, mas não deu. Disse que ia passar o “cerol” em todo mundo”. Mas, conversa de prefeito, sabe como é que é. A quantidade de pessoas que vem para as ruas é muito maior do que qualquer “cerol” que o prefeito possa ter.

As pessoas estão vindo para as ruas, cada vez mais as habitam, tomam conta do espaço público, que afinal de contas é delas. Caso venham todas de uma vez, ficaremos como um mercado de Marraquesh, gente muita gente com galinhas, cabritos, mercadorias diversas, toda a sorte de quinquilharias e de piratarias para vender, um mercado persa coalhado de tapetes voadores e de batedores de carteiras.

Enquanto isso alcanço o meu destino e tenho os meus dissabores previsíveis numa fila de banco. Pronto, compromissos saldados posso me dedicar a ver a paisagem. E o que vejo? Ruas cheias de gente, lixo por toda à parte, povo das ruas tentando arrancar uns trocados para sobreviver por mais um dia, praças sujas, trânsito caótico. As que as coisas não mudaram muito na cidade nos últimos tempos. A cidade, o ambiente propriamente humano, lugar de encontros um grande fórum, uma agora, onde tudo o que é humano se concentra.

O povo que aqui se encontra procura sobreviver humanamente. Na aparente desordem encontra-se uma ordem oculta. Tal como nos formigueiros, cada indivíduo sabe precisamente o que está fazendo, para onde está indo, o destino é certo. Exceto para alguns que vadiam e deixam-se estar, parados, atônitos, catatônicos. Deve ser assim que os animais se sentem nos zoológicos, presos, sem ter para onde ir, catatônicos, lindos seres que um dia foram selvagens, e que podiam ir onde bem entendessem, agora contidos por limites, cercas, grades, ruas, sinais, portarias que não podem invadir, restaurantes que não podem freqüentar, teatros elegantes que podem apenas olhar de longe.

Contido, eu também não sei para onde ir, o movimento incessante de pessoas e de automóveis atordoa. Agora, voltar para casa, o meu refúgio, onde respeitarei todos os limites e cercas. Subirei o elevador com o vizinho com quem não converso, nem sei o seu nome, e resistirei a fazer contato visual com ele, para não ter que dar uma boa tarde formal, me enfurnarei em meu pequeno espaço de urso domesticado, não farei barulho para não incomodar, assistirei televisão e irei para a cama. As perspectivas não são mais animadoras do que as dos animais do zoológico. No entanto, havia algo a que eu me havia proposto: olhar a paisagem, perceber a sua beleza, como se nunca tivesse visto os monumentos, os prédios as praças. Haveria alguma beleza a arrancar de uma paisagem já conhecida e vista tantas vezes?

Voltei à praça. Nela nada de novo, um gramado mal cuidado e empoeirado, algumas pessoas sentadas, alguns bancos de cimento vazios. Pracinha mais sem graça. Brinquedos quebrados, um escorrega desconjuntado, a estrutura de um balanço sem cor, um monumento de concreto que poderia ser um chafariz moderno, homenagem sem gosto ao Niemeyer.

Beleza? Sentei no banco da praça. Por um minuto tive uma sensação de paz ouvindo o ruído da cidade que chegava até mim continuamente, uma vibração rítmica das inúmeras vidas que estavam criando aquele espaço decididamente humano.