Quaresma
Repetia minha mãe toda vez que me olhava daquele jeito estranho, provavelmente em resposta às proprias dúvidas: "Nasceu na quarta feira de cinzas, essa menina não é normal".
Deixou de me chamar pelo nome, se estivesse hoje viva, eu perguntaria o porquê. Mas como nem eu apreciava o dito cujo com o qual fui batizada, sentia-me bem, muito bem com o apelido: Alma.
Não lembro-me quantas vezes mais meu aniversario repetiu-se na abertura da quaresma. Mas seu início sempre me parecia um abrir portas para outras almas, um caminhar sobre misterios. Nesse periodo meus irmãos e eu nas tardes de chuva ouviamos embevecidos tantos causos relatados magistralmente por minha mãe sobre lobisomens e outros seres estranhos que durante quarenta dias vagavam entre os humanos. Sair de casa à noite, não cogitávamos.
Cada ruído transformava-se em grunido e em arrepios de medo em nossa pele.
As sextas-feiras eram sagradas, não apenas a última, todas. Sexta sem carne, sem barulho. Ao aproximar-se a noite a cama era um tormento se o sono não viesse. As doze badaladas embora não pudessem ser ouvidas eram temidas minuto a minuto. A insônia já era visitante em minha infância, não foram poucas as vezes em que procurei o aconchego da cama dos meus pais.
Hoje, lembro-me com uma saudade que fere, saudade dos temores infantis substituídos pela realidade. Saudade do colo de mãe em cada palavra por ela proferida, saudade da ingenuidade, saudade de uma quaresma no tempo perdida. Não que eu seja religiosa, não sou, nem comungo de ritos. Mas sinto um saudade profunda de um tempo em que eu mesma acreditava em contos de fadas, em lobisomens e que nascer em uma quarta-feira de cinzas explicava meu apelido e a sensação de ser uma estranha entre tantas e tantas almas iguais a minha...