Crônica do imigrante desconhecido 


Como teriam descoberto novamente o esconderijo, se agora era apenas um sonho mau, um pesadelo? 

A mãe improvisava uma fritura desagradável e malcheirosa num canto do sótão. A irmã mais velha contemplava, pelos buracos de uma falsa rosácea na fachada do prédio, a pesada solidão da rua, como uma dádiva. Lá fora, pensou um instante — com toda a certeza ela pensou nisso —, não havia ainda alvoroço entre os cães famintos, não sentia ainda o frio na medula que lhe causava o alvoroço dos cães. 

Quanto a ele, pirralho esperto, perambulava pela cidade ocupada, procurando lenha e comida que pudesse trazer às escondidas numa velha manta, atento aos guerreiros de farda e aos civis em farrapos, que perseguiam as crianças para lhes roubarem o fruto de suas expedições diuturnas. 

O gueto ardia. 

De volta a casa, reconheceu, entre os mortos espalhados pelo chão da calçada, vizinhos e companheiros de folguedos, moleques da sua idade. Próximo dali, reconheceu também uma porta arrancada de seus gonzos. E fios ruivos de cabelo, muitos fios ruivos e castanhos de cabelo nos degraus da escada furtiva. 

O coração disparou, lágrimas quentes vieram-lhe aos olhos. 

Tarde demais. 

Não viu quando as levaram para serem lançadas ao vento, não viu nada.
Lançar ao vento, a imagem que restara no fundo de sua última concessão à divindade, desde aquela tarde até ontem, toda uma vida em exílio e cruel retrospecto, numa dupla dimensão de orgulho ferido e errância à volta de si mesmo. Tomando coragem, sempre tomando coragem. Ou se deixando tomar por algo que chamou de destino, contra os profetas. 

Quando lançou-se ao vento, por sua vez, levava consigo muitas palavras incrustadas num único tormento, em puro desamparo. O que sonhava agora, entre o décimo andar e o asfalto atarantado, eram outras palavras, outros tempos, uma saudade descabida. Em toda a sua vida, só esse instante de luz, um fiapo de sol faiscando entre os prédios. 


(24.5.2005)