até as pedras...

            
   


             No alto de um coqueiro lá estava ele, o pássaro meio acabrunhado, cabeça enfiada entre as penas, vez em quando uns arrepios da plumagem contra o azul do céu.
            Cá embaixo seguia ela absorta e lenta. Por fora um sol de verão, mas por dentro baixara um mutismo de quarta de cinzas,  ela estava na rua da amargura com a chave da porta esquecida do lado de dentro... nem entrada, muito menos saída.
             Sabia que o tempo daquele encontro  apaixonado chegara ao final, sabia também que tinha lutado como brava e quem sabe flechado um coração  já morto de véspera. Jogara todo o seu saco de confetes sobre ele... não economizara nos adereços e vivera um estonteante samba enredo escrito dia a dia nos descampados da noite e do silêncio das horas tardias.  Agora precisava varrer o salão silencioso ainda cheirando a lança- perfume de olhares tórridos, fluidos, vaporosos, de declarações sussurradas que ele ouvia lá, tão distante. Depois, então, calçar a sandália do desamor e seguir na estrada dos seus dias, ir em frente até a próxima parada. Aprendera. Assim mesmo doía muito. Entretanto essa dor era como as cinzas do que fora brasa, como toda a vida que um dia morre, ou se transforma, sequencia natural... e os seus eram passos de quem não fica olhando pela vidraça os outros se molhar na chuva das oportunidades, nos gozos do amor... sim, eram passos de quem arrasta a sandália pelo asfalto nestes carnavais da alma apaixonada.
               E por acaso vale a pena ter sangue para nunca sangrar?
               Ser feliz às vezes é assim algo um tanto inexplicável, quem olha de fora pode te dizer que estás doida, mas tu sabes lá o que te tocou profundamente, ainda que ao fim de tudo ao acordar tu tenhas chorado muito.
               Aquele poema triste eu escrevi em prantos, mas e daí?
               Se eu ainda consigo chorar é porque a minha alma não secou...
              "E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade..."
               No alto do coqueiro um leve esvoaçar de penas, talvez um suspiro... mas passarinho?
Todos os seres suspiram, até as pedras, quando a gente as olha e vê que têm olhos e contam tempo e estão ali tão quietas nas bordas do canteiro...
              Calor de fevereiro, véspera de carnaval, e aquele passarinho de repente cresceu,
estremeceu de leve,  esticou o pescoço de passarinho, girou a cabeça  para todos os lados. Então abriu as asas e alçou seu voo...
             "É preciso cantar e alegrar a cidade..."

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Nota:
 entre aspas: versos da letra da música
QUARTA FEIRA DE CINZAS
de Vinicius de Moraes
tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 17/02/2012
Reeditado em 18/02/2012
Código do texto: T3505436
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