Minha presença ausente em sua foto
Hoje tomei em minhas mãos uma velha fotografia sua, em preto&branco.
Você ainda muito jovem, jovialidade dos nossos primeiros encontros. Embora não apareça nessa foto, eu ali me encontro presente, eu sou o seu autor. Essa imagem hoje já não representa o real, mas constitui a nossa realidade e as ausências nela contidas são capazes de ser mais significativas do que o que nela, ao seu redor, está presente.
Lembro-me muito bem, era um domingo, bastante sol. Estávamos na praia, era a primeira vez que isso acontecia. Só nós dois, a câmera fotográfica e nada mais. Devia haver mais gente por lá, não me lembro ou até não percebia. Eu só enxergava você. Seu belo rosto, seus longos cabelos pretos – como dizia José de Alencar, pretos como as asas da graúna – deitados sobre a branca e fina areia da praia de Olivença, próximo de Ilhéus, Bahia. Seu perfil, delineado com perfeição, tinha como pano de fundo o céu ali posto e o imenso mar azul da costa baiana, que a luz daquela manhã imprimia-lhe uma cor exuberante, expressando a descontinuidade da matéria e rompendo com o aparente, não revelando uma propriedade substancial, mas uma característica transitória, relacional, ocasional.
Deitei-me ao seu lado, em sentido transversal. Posicionei-me de tal maneira que, apoiado em meus dois braços, com os cotovelos enterrados na areia, eu pudesse segurar a minha Pentax firmemente, próxima e à altura do perfil desenhado pelo seu rosto. Com um clique, eternizei aquele momento.
Como lembra Schapiro (2001) , a dimensão humana da arte não é mais confinada a imagens do ser humano e de seu mundo, ela permanece no artista e em sua capacidade de criação, em sua vida interior e nos recursos da imaginação. As sensações e os pensamentos – memória – que permanecem registrados em uma obra conferem humanidade à arte.
Ao olhar para essa fotografia, muitas lembranças afloram em minha mente, pois relembrar significa requisitar o passado, cotejar experiências vividas, não do que ficou perdido, mas daquilo que precisa ser revivido, os momentos únicos carregados de significado pessoal.
O primeiro impulso que me vem é o da comparação; aquela imagem, eternizada na foto, com a realidade atual; pouca coisa mudou, você continua bela!
Naquela época, éramos jovens, cheios de esperança e de sonhos. Nada de maldade, o que importava era o contato apenas. Pele com pele, olhar com olhar, o êxtase se dava somente na sensação da presença. Eram divertidos os nossos encontros, passear em volta da pracinha, até a hora de soltarem o leão, expressão usada pelos garotos frenquentadores da praça. Aí, então, íamos todos para as nossas casas, satisfeitos por mais um dia passado sem complicação, sem violência urbana, sem assalto relâmpago, sem culpa, sem medo, sem droga. Afinal, morávamos em cidade do interior baiano. Uma cidade próspera, o cacau colaborava para isso, mas ainda carregada de trejeitos bucólicos. Não havia o vício da televisão, por isso dormíamos cedo e cedo a cidade se fechava para o seu sono tranquilizador. A partir das 22 horas as suas ruas ficavam completamente desertas, apenas a lhe espreitar as esquinas alguns gatos pingados à cata de restos de comida deixados nas latas de lixo, que pelo amanhecer seriam recolhidos pelos funcionários da prefeitura.
Naquele tempo eu morava em uma “república” com mais cinco colegas ceplaqueanos: Sérgio da Vinha, Eduardo Nascimento, Selem Rashid, Ilton Morais e Scárdua. Éramos seis efetivos, isto é, com residência fixa. Havia outros três ou quatro, que só apareciam nos finais de semana, pois trabalhavam no Departamento de Extensão, em cidades mais afastadas da sede da Ceplac, instituição responsável pela política do cacau no Brasil. Deixe-me ver se me lembro de seus nomes: José Carlos, “o raspadinho”, Carlos Alberto, Batista, tinha o Diógenes, que trabalhava em Ipiaú e era fã de Miguel Aceves Mejia, cantor mexicano da década de 50 e 60 do século passado, que foi imortalizado cantando Cu-Cu-Ru-Cu-Cu Paloma e La Malagueña, principalmente.
Também passaram por lá os Tourinhos, o Manuel Malheiros, ex-Reitor da Universidade Federal da Amazônia, e o Euro, ex-Reitor da Universidade de Rondônia. Havia também os colegas que apareciam lá só para almoçar. Essa república era remanescente de outra, fundada quando do início das atividades da Ceplac em Itabuna, da qual fizeram parte o Roberto, meu irmão, Mariano, Emo Miranda, Percy Cabala, Jesus Palácios, estes dois últimos de nacionalidade peruana. Alguns deles já se foram para a outra morada.
Novamente tomo em minhas mãos a sua foto preto&branco, perfeita, o modelo facilitava minha ação, minha arte. Tempo bom aquele, mas ele passou e passamos nós. Juntos construímos uma bela família; Roberta, Renata e Ricardo, que eu sempre chamo de família DoReMi, sem querer plagiar e já plagiando. Já temos netos, cinco ao todo; Fellype, Arisa, Hector, Bárbara e Guilherme, o mais novinho, este com forte ligação com o povo do além-mar. A família se completa com os dois genros que ganhamos, Paulo e Eduardo, carinhosamente chamados por todos nós de Paulinho e Duda, respectivamente. Embora grandes amigos, rola leve ciúme entre eles, ciúme não doentio, que só nos deixa envaidecidos, pois os dois querem a nossa atenção. São ambos muito queridos.