_Sinal vermelho
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Deitado no quarto de hóspedes do sobrado onde mora, o marido sente que seu casamento está se diluindo. O gosto, que desgosto, desbotou com o tempo e apenas restou o amargo desleixo do que outrora fora cultivado a dois.
O “eu” do “eu amo você” continua presente e forte. Agora, entretanto, o foco da colocação pronominal mudou um pouco e ele ouviu da esposa, sonoro e fulminante: “Eu tenho mais nojo de você a cada dia que passa, seu traidor!”
O respeito travestiu-se de agressões; a confiança agora tem outra face e se revela como a sentinela da intempestividade, surgindo, aqui e ali, fantasiada de insegurança, medo e intolerância. As palavras estão pesadas e possuem o condão de ferir, machucando o íntimo já maltratado por pequenos outros descuidos cometidos por ambos.
Os carinhos tornaram-se esparsos e disformes... E as gentilezas não existem mais. Acabou-se o “Bom dia!” e ao anoitecer, salvo as bênçãos dadas aos filhos, o silêncio predomina – não mais são trocadas confidências do dia-a-dia que impulsionam a cumplicidade do casal.
Na cama, dois corpos, duas vidas e vários destinos que poderão desvencilhar-se, fragmentando sementes e, talvez, germinando novas possibilidades para cada um dos pedaços que a separação impõe. De repente, o leito de tantas realizações parece ter-se prolongado, impedindo o contato e abrindo um abismo maniqueísta, revelando o virtuoso e o pecador – quem seria quem?
Por mais que estejamos errados, a natureza humana nos impõe absolvição! Somente os suicidas professam, num ato heroico de covardia, a própria condenação. Sendo assim, se nos mostramos incapazes de ceder, de reconhecer e de pedir perdão e acreditamos que somos os detentores da verdade e o lado bom e fiel da relação, quem ou o que prevalecerá?
Temer o novo é antigo demais! Manter-se infeliz e ser a infelicidade daquele a quem se jurou amor eterno, egoísmo.
Por que prender-se a uma relação agora tão frágil, sem sorriso? A liberdade, a possibilidade de novos voos, não seria alternativa razoável, plausível?
Não se deve fazer chorar a quem se prometeu fazer sorrir, mesmo que se tenha dito que seria “na alegria e na tristeza” – o fazer sorrir deveria ser obrigação; o choro, apenas contingência externa, nunca a consequência das ações ou omissões imanentes ao casal.
A continuidade das relações a dois requer comedimento, abnegação, doação, zelo e sutilezas, mas o tempo os tornou exaltados, despojados, orgulhosos e deveras taxativos nas agressões mútuas. Um fere com gestos; o outro, com palavras. Todos, porém, estão feridos!
Os olhares mudaram. As rugas do tempo e as decepções lhes tiraram dos olhos a energia do alvorecer. As pupilas estão contraídas. Onde foi parar a droga que os entorpeceu no passado, provocando palpitantes alucinações enxertadas de promessas ditas no furor da emoção? Falsas promessas ou o tempo revela que o amor se volatiza como o placebo mal projetado da paixão?
Os gostos mudaram; os sonhos mudaram, mas ambos ainda sonham, pois a vida é um sonhar onde a todo instante nos avisam que desceremos na próxima esquina. O que seria dos sonhos se o raio de curvatura dos devaneios não tendesse ao infinito... Os sonhos deles, entretanto, não convergem mais.
Ele gosta de música, mas a música dele incomoda. Ele gosta de arte, mas a única arte que prevalece é a do marido levado que, rezando ou pecando, sempre trai quando está diante do computador. Vício? Desrespeito? Desamor...
Se for um vício, é de auxílio e de tratamento que o doente precisa. O viciado, muitas vezes, não tem a devida consciência da enfermidade e o voraz alijamento apenas o conduz para nova dose.
Se for desrespeito, que se busquem as causas. Uma avalanche se inicia quando da montanha se desprende um minúsculo grão – uma vez solto, a gravidade providencia a queda!
Se for desamor... Sufocado, olhos fixos no teto, o marido pede ajuda.
Crato-CE, 16 de maio de 2010.
10h46min