Matinê de Carnaval
Com a proximidade do tríduo momesco, bateu-me, de repente, a lembrança do meu primeiro (e único) Carnaval. Muito cedo me convenci de que o rei Momo e eu nutrimos irremediável incompatibilidade de gênios. Garoto pobre da roça, jamais soubera da existência daquela festa. Para mim, como para todos os meninos do tacanho mundinho em que eu vivia, Carnaval era uma palavra de pouco, quase nenhum significado.
Daí, por razão que só a pobreza explica, minha família se mudou para Jales (SP). Fomos morar numa chácara, no limite do perímetro urbano. Na frente do pomar que rodeava nossa casa corria a primeira rua. Ou o que viria a ser. Sufocada, é verdade, pelo capim colonião em que pastava alguma vaca ou cavalo amarrado com corda longa. Mas era a rua que dava início à cidade. Com menos de dez anos de fundação, alguém talvez achasse estranho, nós não, chamar cidade àquela meia dúzia de ruas. Casas, não mais que algumas dezenas.
Causou-me impressão muito viva, na noite de nossa chegada, o clarão azulado das lâmpadas fluorescentes da única farmácia do lugar. Primos que lá residiam conduziram-nos, a meu irmão e a mim, para conhecer a vida noturna. Até então, eu nunca tinha estado numa cidade à noite. A rigor, em cidade de verdade, nem de dia. Foi um deslumbramento para os meus olhos de sete anos. Meu irmão e eu nos tornamos assíduos freqüentadores da noite. Encantava-me a magia daqueles misteriosos cilindros de luz azul. Sentados na calçada, antes de dormir, levávamos tempo conversando, no esforço, quem sabe, de provar para nós mesmos nossa nova condição urbana. De origem campesina, atraídos àquele fim de mundo que começava a ser desbravado, ao qual, apropriadamente, se dava o nome de sertão, tínhamos a chance de nos integrar ao Brasil que se ia desfazendo de sua configuração rural. Para nossa presunção infantil, fôramos alteados a moradores da cidade com direito às benesses da civilização e da vida moderna.
Garoto urbano, mais cedo ou mais tarde, eu teria que ser apresentado ao Carnaval. Aconteceu em Votuporanga. Eu passava férias em casa de outros primos, que me arrastaram à matinê. O salão parecia um manicômio com mil loucos surtando ao mesmo tempo. Não me recordo de confusão maior. Energúmenos fantasiados pulavam como cabritos. De cara, me pisaram no pé, mas agüentei firme. Só não entendi a recomendação de minha prima de que devia tomar cuidado com os lança-perfumes. Nem teria adiantado querer entender. Eu ia lá saber que assim se chamava aquela bisnaga do capeta, que alguns carregavam na mão?
Com menos de dez minutos, aconteceu. Cegou-me um esguicho que só podia ser de molho de pimenta. Nunca senti queimação igual. Abri um berreiro de criar uma roda de silêncio à minha volta. Tomaram-me pela mão e me levaram para casa. Seguiram-se dias de muita água fria e aplicação de colírio. Temia não voltar a enxergar como antes. Na infância, porém, tudo passa rápido. Encerrei ali minha carreira de folião.
O lança-perfume foi banido dos salões e das ruas. Pelo menos oficialmente. Deram-lhe serventias piores do que magoar os olhos. Também o Carnaval deixou de ser o que era. A singela diversão do povo foi encampada por garras de abutres. Passou à propriedade de figurões do submundo. Hoje, movimenta fortunas, conquistadas sabe-se lá como.
De onde a cobiça mete as sujas patas, a dignidade foge às carreiras. Assim funcionam os negócios impostos pelo deus Mamon aos seus adoradores.