DDD - Diário de Derrotas [21]

07h30m

O modo como as coisas funcionam, em total desacordo com o que é o certo, me irrita. Essa é uma constatação de quem passou o final de semana com dois banheiros e oito rolos de papel higiênico à disposição e sem nenhuma vontade de aliviar as tripas, algo que, em contrapartida, ocorreu nos primeiros minutos fora de casa, a caminho do trabalho, numa segunda-feira chuvosa e quase fria.

07h35m

Estou longe da minha casa e longe do trabalho; estou na plataforma da Estação Jardim Romano, e essa plataforma está cheia, sinal de que o trem atrasou, que é sinal de que ele virá lotado, que é sinal de passar muita raiva e calor e aperto quando o próprio chegar. Cogito a possibilidade de pegar o que vai sentido Calmon Viana (e ficar mais longe ainda de tudo), porque tenho sono e preciso sentar e cochilar. Porém, no mesmo minuto - e, portanto, jogando essa idéia pra escanteio - surge no horizonte o trem que nos levará ao Brás, e é um dos modelos antigos, que não tem ar-condicionado e tem os bancos nas laterais. E está cheio.

07h37m

No mesmo minuto que o sinal de fechamento das portas tocou, o outro trem surgiu na outra plataforma. Com ar-condicionado e tudo.

07h45m

Itaim Paulista: esse é um nome que é sinônimo de tudo o que é ruim no planeta. É um bairro desgraçado de longe do centro, onde pelo menos 80% dos moradores não tiveram os mais singelos preceitos da boa compostura em sua educação; uma cambada de gente mal-educada e esbaforida. E, na estação homônima ao bairro, quando o trem abre as portas, você tem que se segurar bem e plantar os pés no chão e se preparar para ser esmagado, ter as costas arqueadas, o baço acotovelado e os pés pisados.

07h47m

Agora está tudo bem. Estou rente a "parede" do final do vagão; à minha frente, temos uma mulher dormindo com a cabeça encostada em tal parede; no meio, acordada e munida de sacolas, uma senhorinha e ao lado um japonês de bermuda de corrida. Penso que: alguém que usa bermuda numa segunda-feira não trabalha, logo, não precisa ficar sentado, descansando.

07h55m

A mulher do meio ajeita as sacolas, e ao mesmo tempo em que me dá uma esperança de que ela vá se levantar, vem um tapa da realidade dizendo que ela teria que ser muito toupeira pra ficar posicionada tão longe da porta.

07h58m

Estou sentado entre o japonês e a mulher que dorme. A mulher que estava ao meu lado, e que agora está à minha frente, parece estar meio putinha da vida porque não deixei ela sentar. Fecho os olhos, sinto o vento na nuca, ouço as mesmas músicas de sempre (desde o começo do ano passado) e tento dormir.

08h08m

Acordei com o empurra-empurra. Na verdade, uma mulher enfiou a bolsa dela no meu nariz e quase subiu no meu colo. Não preciso nem de muito esforço pra descobrir que estamos em São Miguel Paulista, que é outro antro de gente filha da puta da mais alta patente.

08h15m

Outra bolsada na cara.

08h20

Sinto o clima estranho no ar. Mesmo sem ouvir as conversas por causa do volume, mesmo com os olhos fechados, sinto que há algo estranho no ar. Eu abro os olhos, e as pessoas me olham como se eu tivesse matado aquele Yorkshire com um balde. Não sei o que fiz. O japonês faz uma cara de cu pra mim, uma cara de cachorro que caiu da mudança, e meio que vai disfarçando pra ajeitar sua mochila e devolver a bolsa da mulher que está na frente dele. Eu não entendo pica nenhuma até que, atrás da dona da bolsa-despertador, vejo um rapaz de camisa PP com gola V, e ele está suando e meio abatido, quase desfalecendo.

08h22m

Novamente estou em pé.

08h35m

Estou na plataforma do trem que vai pra Luz, e ela só não está tão cheia porque todo mundo conseguiu ir no trem que acabou de sair, menos eu e uma coisinha de coxas grossas que está do meu lado. Devo estar atrasado. Sei lá. Quem se importa?

09h07m

Estou diante da caixa da Hering. Ela tem um nome bonitinho, e também é bonitinha. A aliança de noivado dela também é bonitinha. O modo como ela segura o cigarro no horário de almoço no estacionamento do prédio também é bonitinho. É bonitinha a maneira como ela não deve fazer menção de querer saber ou se lembrar da minha existência. A vendedora que me atendeu sim, se lembra: eu sou o cliente mais fácil que alguém pode ter. Entro, vou direto ao que quero, já sei o tamanho e a cor e o preço... Meu contato com ela é mera burocracia. E dou tchau pras duas, ignorando o "volte sempre" delas, que sabem que trabalhamos todos no mesmo metro quadrado, e saio, vinte e dois reais mais pobre logo cedo, antes mesmo de ter comido alguma coisa.

14h05m

Comi ali no chinês, mesmo. Não ando podendo gastar, e não ando com muita vontade de comer. Agora estou na minha livraria favorita, folheando um livro de fotografias da Segunda Guerra Mundial.

14h10m

Mas minha sorte é muito madrasta mesmo... Estava lá, apreciando a foto de três Stukas, quando de repente me deu um suadouro frio e umas pontadas no estômago; guardei o livro e subi disfarçadamente umas escadinhas que dão aqui, no banheiro, que é lindo, tem umas paredes vermelhas, é silencioso e tem oito rolos de papel higiênico reserva e um exaustor potente; o único problema é que eles trocaram a fechadura e essa porra nova aqui não dá pra trancar, já que não tem chave embutida como a anterior e como a de qualquer fechadura de banheiro de terminal de ônibus de periferia.

17h00m

Zerei tudo o que eu tinha que fazer e tudo o que apareceu de repente. Só consigo pensar na minha cama.

17h02m

Também penso no meu computador: sábado retirei uma das memórias só pra ver o nome/modelo dela pra ir comprar umas mais potentes, só que, uma vez que fiz isso e recoloquei a filha da puta de volta, ele não quis funcionar mais... E eu, que precisava urgente dar um UP na criatura pra poder instalar os Photoshops da vida que terei que usar por conta da faculdade, tomei mais ainda no cu do que o previsto. Como sempre.

17h17m

Estava tudo bem, até que o telefone tocou. Alguma coisa muito importante para a empresa acontecerá amanhã e todos terão de vir trabalhar "mais arrumadinhos", o que significa usar sapato, calça social e camisa enfiada na calça. Para pelo menos 70% dos funcionários, creio que tudo bem, estão sempre elegantes enfiados em seus ternos e coisa e tal, mas, agora... Pra mim?

18h30m

Estou indo no Shopping Paulista, comprar um sapato e uma calça social. Depois, passarei na farmácia e comprarei um novo prestobarba, para fazer a terceira coisa que mais detesto (depois de lavar a louça e digitalizar documentos, respectivamente em primeiro e segundo lugar) na vida.

E amanhã é o primeiro dia de aula da minha tão postergada faculdade de Fotografia.

Primeiro dia de aula de Fotografia com sapato e calça social e barbinha feita.

Claro, não é o fim do mundo, mas, como eu disse: o modo como as coisas funcionam, em total desacordo com o que é o certo, me irrita.

E essa é a constatação de alguém que não faz idéia da hora que vai chegar em casa.

Caralho.

13/02/2012

Black Flag - I Don't Care

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 13/02/2012
Reeditado em 13/02/2012
Código do texto: T3497218
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