SAÍDA DE EMERGÊNCIA (texto incompleto)
Tem dessas cenas da vida das quais não tem como se escapar. Ainda mais quando você está em um ônibus de viagem. Pior, quando todos os indícios da merda em que você se meteu acontecem muito provavelmente só na sua cabeça.
Nunca fui adepto da famosa pontualidade dos ingleses, só que quando a passagem tá na mão e a viagem é longa - e cara, diga-se de passagem (com o perdão do trocadilho)... Enfim, com horário de ônibus não se brinca. E dessa vez quase que fiquei pra trás. Alguém deve estar rindo ainda agora, por ter me dito que se pegava aquele trem em um ponto e não no outro. Maldito seja! Meu anjo da guarda deve ser forte e por alguma razão no último instante consegui me fazer dentro e acomodado em uma confortável e espaçosa poltrona de leito. Um mimo aos sedentários como eu. Claro que não sem antes tropeçar no degrau do ônibus e depois na rampinha que fica logo entre os primeiros passageiros. Também não vou omitir a topada que dei com a mochila na cara duma loura com jeito de recém completados 18 anos, olhar provocante, vestidinho vermelho apertadíssimo ao corpo esguio e magro... E com isso qualquer chance de me pavonear pra cima da minha loura vizinha acabava ali.
Tem uma regra social que, quando desrespeitada, leva o condenado ao fuzilamento sem chance de defesa: jamais atrase um ônibus! Depois de tropeços e mochiladas, sinto como se houvesse uma aura de olhares pesando sobre mim. Quase posso adivinhar o que pensavam: "Gordo, atrasado, desastrado, aposto que perdeu a hora enquanto comia". Nesse instante percebo que tudo que eu fizesse seria acompanhando de algum balão cartunesco e indignado: "tinha que ser o gordinho atrasado".
Assim, pensando em minimizar os danos, tratei de dormir. Nesses ônibus leito o travesseiro vem lacrado em um plástico à prova de mim. Sem brincadeira, foi difícil rasgar aquilo. Não me orgulho de admitir, mas precisei recorrer à ponta de uma chave pra conseguir abrir. E o processo de resgate do travesseiro soou como fogos de artifício aos ouvidos do viajante à minha frente, que já dormia, e se virou para trás com o inconfundível olhar de "seu filho duma puta, fica quieto aí!". E na pressa nada funciona, como se sabe muito bem já de antigos ditos populares. Levei o dobro do tempo pra arrancar o travesseiro, e nisso já tinha mais uns dois me olhando. Pois bem, vamos dormir!
Tática que, a princípio, funcionou muito bem e por algumas horas. Em ônibus sem senhora tagarela, sem gente doente limpando a garganta de sonoros catarros durante toda a noite, criança levantando - ou não - para vomitar, nem bebê chorando, deduzi que o estorvo dessa viagem era eu mesmo a essa altura. Sensação confirmada pelo sujeito que vinha na poltrona logo atrás da minha. De tempos em tempos ele me chutava as costas, e que fique claro: os chutes vinham sempre momentos após eu pegar no sono. Coisa que me deixou refletindo; será que pra completar eu ainda estava roncando? pior se estivesse às estrondosas flatulências, possibilidade existente, dado meu almoço daquele dia; mas acredito não ter atingido esse nível ainda. De qualquer forma, desinclino o assento para comer meu kit de lanche. Nem venha com essa de “lá vai o gordinho...”. Eu tava com fome!
Chega uma hora da noite, no meio da estrada, que qualquer fonte de luz que forme uma penumbra é suficiente pra virar um holofote em cima de você. E lá estava eu no meu palco, sob o aviso de “saída de emergência”, escandalosamente cínico, e talvez mórbido mesmo. Já sentia os olhos de alguém me reprimindo por estar abrindo o pacotinho de bolacha água e sal. Juro que ainda invento uma embalagem que não faça ruídos. Será a sensação das salas de cinemas e ônibus de viagem.