CAMBONE
CAMBONE
eugenio malta
Messias chegou aflito sobre um assunto de preto velho e marafu.
Percebi de cara que vinha musica ali por dentro daquele papo.
Bem, se marafu e' cachaca eu tenho uma garrafa ali no guarda roupa.
Sobre a minha mesa de estudos, no quartinho dos fundos, diante do quadro negro, ele acomodou o violao no colo, destampamos a garrafa de cana.
Meio confuso, falava e misturava o que estava dizendo sobre um terreiro de macumba que fora ontem enquanto incluia lembrancas de pai de santo que trazia da infancia…
Era uma conversa forte que exigia goles rapidos.
Algumas rizadas para abrandar, piadas sobre causos comicos fluiam e, sem demora, um solfejo de um canto trazido de la' do poco da memoria...um ponto de macumba? Eu tambem sabia uns tantos.
Coisa facil e' cantar e tomar uma...mas este tema temperado de candomble’, umbanda, dispacho de esquina e conselho de pai-de-santo traz inerente um sofrimento transcendente que mexe com a religiao da gente.
Escravos e mais escravos contados numa igual quantidade de ondas atlanticas que sovavam os cascos dos navios negreiros feito os versos de Castro Alves entravam na imaginacao da nossa conversa juntamente com as ondas da cachaca.
Logo logo depara-se, no troca-papo, com a metafisica do binario vida-morte. Ai' entao a gente filosofa e a musica sai, pula pra fora do peito:
" vida vai
vida vem
e a vida
a gente nao tem"
Estes sao os primeiros versos da musica que estava nascendo naquele instante.
Nao foi dificil encontrar um nome para ela porque a gente sabia, ate’ por ouvir dizer, que no extase magico dos eventos religiosos um personagem mediador entre os dois mundos se faz necessario. E’ aquele que atua como intermediario entre os do mundo divino e os do mundo terreno. Na umbanda seu nome e’ Cambone.
"quem morre
mais vem
do que vai
vem pra ver
voce vai crer
cambone vai ensinar"
O gole sorvido da pinga tambem exerce sua funcao historica em nossas cabecas. A cana de acucar sob o colonianismo do trabalho escravo cria a sua propria contradicao: o alambique. A cachaca se torna a chave, um cambone mediador, entre os dois mundos: o do dono e o do escravo.
“gente bem
gente mal
na roda nao tem
desigual”
A noite e’ um veu separando o dia de sol, de trabalho, do outro.
Negra, na pele sofrida, a noite alberga a chance do intimo.
Pensar e’ sentir o espirito noturno.
O pensamento nao pode ser visto, senao ha’ castigo pra ele.
Um outro mundo surge, assim entusiasmado, pela memoria contada em segredo sobre um outro mundo fora daquele diario.
E’ no escuro, na sombra, na hora intima, que o lado obscuro, proibido, se reune e comunga religiosamente.
“cambone vai ensinar
que o mundo nao vai mais rodar”
E’ preciso querer, desejar, almejar, sonhar, buscar pelo melhor, pela saida do sufoco senao e’ o fim.
“ a gente e’ mais forte que o mal
vem tambem
seja alguem
se a forca do mundo somar
nossa roda e’ que nao vai mais parar “
Os versos escritos em giz branco no quadro negro, por um instante, sugerem a alusao do dominio racial da raca branca sobre a negra. O branco diz sobre o negro. Pirei. E entao?
Bobagem, penso e tento refutar mentalmente.
E’ uma coinscidencia comum ou um efeito etilico, sei la’.
Mas, na verdade, eu sou branco e o Messias negro. Como resolver este instante de parametros mentais ja’ que estamos compondo a dois?
Ora, que se foda a carga pesada das diferencas passadas ! Hoje o que e’ preciso e’ dar a volta por cima. O melhor e’ descobrir como supercar a idiotice passada, ainda que ela tenha sido de ganho para uns e perda para outros.
Mais um gole de marafu e juntos perguntamos a ela, a cana, ali nosso cambone: como resolver a questao ? A resposta veio de pronto: eles estao todos mortos.
Finalizamos a nossa composicao quando pela janela entrava os raios de sol da manha:
“ficar so’ no mundo
nao traz o amor
o amor vive sim
o amor vive sim
o amor vive sim
cambone e’ aquele que entende
que a roda do mundo e’ a gente
nao deixa nunca de amar
e luta alem do fim”