VELÓRIOS SÃO COMO BOTECOS

Ao se deparar com o título desse texto o leitor poderá ter uma pane intelectual diante da estranheza dessa rara comparação. Qualquer ser normal, de fato, estranharia esse empreendimento , afinal o que velório teria a ver com boteco onde se consome cachaça e outros seres embriagáveis? No velório, ao contrário da mesa de bar, reina a decência puritânica de alguém que nutre o desejo de prestar uma última homenagem a alguém. Então, diante de objetivos supostamente diferentes o escritor que afirma que velórios são como botecos estaria, como diz a expressão popular, fora da casinha? Ou degrada-se em vãs elucubrações querendo comparar o incomparável? Na verdade, se perscrutarmos os fios da teia da vida veremos relações entre tudo e todos; umas íntimas, outras profundas, algumas visíveis ou invisíveis, outras superficiais, outras distantes e de difícil percepção. O hábito poderá acostumar mal o nosso visômetro-mental nos fazendo esbarrar na superfície das coisas ou dos fatos da vida. E aí se pararmos nesse pernicioso hábito mental seremos facilmente seduzidos pela cultura do normal, rejeitando o incomum, o ousado e o estranho. Estranhar-se diante do incomum é normal, mas esbarrar no estranho é ruim. Quanto a comparação proposta, pode-se ver sinais de semelhança entre velórios e botecos, a começar pela manifestação da emoção que é bastante visível nos dois ambientes citados. No velório e no boteco as pessoas manifestam um tipo peculiar de emoção, traduzida em solidariedade, lágrimas, abraços, consolos, tristezas ... O morto velado no caixão derruba a máscara dos vivos, e aí não há como esconder nossa própria fragilidade. A sensação de absolutidade degrada-se e transforma-se em consciência de impotência. Diante dessa metamorfose consciencial buscamos o outro como refúgio, como proteção. O defunto, que se encontra no último degrau da sua impotência, é na verdade cada um que vai vê-lo. É impossível não imaginar a própria morte ao redor de um caixão. E o próprio ato de imaginar é uma antecipação da própria morte. Então, naquele momento, o vivo vira morto, visto que a morte é inevitável. Assim, o dinheiro e os bens materiais, as próprias ideias momentaneamente perdem a razão de existir. O que resta são as pessoas que também são frágeis como nós. Diante dessa pressão existencial a emoção desponta furiosamente traduzida em gestos de solidariedade, em choro ou simplesmente em um olhar. Contudo, essa fragilidade é tão fugaz quanto o efeito de uma dose de cachaça engolida em um boteco. No dia seguinte, as pessoas precisam refazer a própria autoridade para continuarem vivendo e voltarem à normalidade. No boteco o grau de emoção é também bastante elevado. A solidariedade, o riso, o choro, o abraço, o elogio e o olhar são bastante fluentes após um gole de cerveja. Se no velório nos damos conta que somos iguais ao morto, no bar nos damos conta que somos iguais ao bêbado caído na calçada. Não importa a quantidade de dinheiro, o poder e a fama que venha a ter. O certo é que aquele que está caído na calçada não passa de um bêbado como eu. Assim como no velório, não posso esconder minha fragilidade quando estou bêbado no boteco. Então, a única saída é me unir aos outros; são eles que podem me levar para casa, dirigir meu carro ou subir minhas calças. Diante desse instalo da consciência as emoções fluem e passamos a sorrir para todos, a cumprimentar a todos, a abraçar, a beijar. Mas, no dia seguinte tudo acabou, voltamos a ser homens normais que mostram suas virtudes e escondem seus defeitos. E então, nesse caso, qual a diferença entre o defunto impotente que precisa de alguém para levá-lo ao cemitério e o bêbado que precisa de ajuda para ir para casa? De que vale ter um carro se não podemos dirigi-lo estando bêbados ou mortos? Tanto o velório quanto a mesa de bar possuem mecanismos capazes de desmontar a auto-suficiência humana e favorecerem a união ao despertarem a emoção para a vida. E você o que escolhe: ir ao bar ou ao velório?

CARLOS REIS SOUSA
Enviado por CARLOS REIS SOUSA em 13/02/2012
Código do texto: T3496393
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