O ENCONTRO COM O LOBISOMEM
1967-1968.Tudo parecia caminhar dentro da normalidade naquela tarde de férias! Período de férias escolares de fim de ano, para nós era uma maravilha! Quando Dona Ruth e dona Nenzinha viajavam para São Paulo, e nós ficávamos totalmente donos dos nossos destinos, livres para voar, como pardais nos ares.
Acordar cedo era a nossa rotina. Tomar café, ouvir música de Beatles e da jovem guarda, ir ao bar de Dôca pedir picolé para o Adauto, novamente ouvir músicas à tarde, fazer uma limonada gelada, e , depois ir para o campo de futebol na várzea para jogar bola com Zé Preto, Renan, Renê, Adenil, Anfilófio, B 12 , e os demais colegas de rua e de escola que curtiam como nós, as férias de fim de ano. Jogar bola no campinho na rodagem logo na saída para Correntina, também era uma das nossas opções de lazer. Caçar passarinho na pedreira ou tomar banho no rio, eram escolhas inexoráveis para todos da nossa turma. Havia às vezes a temporada de pescas , quando alguma manjuba passava pela cidade, no rio, é claro, trazendo uma leva de peixes rio acima. Às vezes assistíamos ao conjunto musical, Os Jovens, com Ruy, Flavio e Cheiroso, ensaiando. Numa destas tardes o Joselito deu um show na bateria, cedida pelo Flávio. Flavio ,era o baterista e o locutor principal da cidade nos serviços de alto - falantes.
À noite, além de passearmos no Jardim Jacaré, o maior programa noturno era assistirmos aos filmes no cinema da cidade. O seu Adenor conseguia entradas gratuitamente para nós, já que não tínhamos dinheiro algum. O Cine União, que pertencia a um dos homens mais ricos da cidade, Sr. Rosi, e que o havia arrendado para o Senhor Lima, que paquerava com Santana, uma colega de escola. Antes de entrarmos no cinema era praxe darmos uma passadinha no Bar e Sorveteria Santa clara, como se fosse um ritual noturno ou assinatura de ponto. O Bar e sorveteria Santa Clara jamais sairá da nossa memória; e a prova cabal disto é que o Poeta Flamarion Costa escreveu algo sobre o Santa Clara.
Estávamos numa destas tardes de preguiça na biblioteca da casa Dona Nenzinha, curtindo umas músicas na Radio - vitrola dos Beatles , esperando a hora de irmos jogar o futebolzinho básico nas lamas do antigo Estádio na várzea, quando ouvíamos a voz de Bêia dizendo para Ana, irmã de Joselito, pedindo para que ela fizesse uma goiabada.
- Não tem goiaba, Bêia, respondeu Ana. Para fazer doce de goiaba tem que ter goiaba! Completou. Na verdade Ana era uma cozinheira de mão cheia, e fazia doces deliciosos. Até sentimos o gostinho delicioso do doce na nossa boca só não sabíamos que o nosso gosto amargo estava por chegar e ameaçar a nossa gandaia da tarde.
- Mande Joãzinho e Lito irem catar goiabas na Barra! Disse Alguém. Não me lembro se foi Vaninha, Detinha ou Bêia. Só sabíamos que havíamos dançado! E feio! A fazenda ficava distante da cidade seis quilômetros, aproximadamente e teríamos que ir, nas canelas .(a pé)
Deixando as tristezas de lado, e o nosso jogo de futebol, cabisbaixos rumamos para a fazenda. Seis quilômetros de areia molhada para ir e seis para retornar, não era mole não. Ao passarmos pelo campinho, já fora da cidade, na rodagem, ainda jogamos um pouco de futebol com alguns conhecidos que jogavam bola naquele instante e rumamos de vez para a fazenda.
Chegando na fazenda, vislumbramos a lagoa e a várzea, e notamos que o Rio já inundava todas a manga e a baixada, onde se plantavam as hortas no período de estiagens. Estava tudo alagado! Para chegarmos nas goiabeiras, teríamos que andar dentro das águas barrentas, traiçoeiras e correntes, e também havia um perigo iminente de cobras e de sermos levados pela correnteza. Inteligentemente, resolvemos passar pela roça de Padim Berto, e fomos colher goiabas no corredor do véio Manezinho (meu avô). Lá nos barrancos existiam duas goiabeiras e do próprio barranco subimos e começamos a colher as goiabas maduras, enchendo as sacolas de nylon , concorrendo assim com os periquitos verdes e outros pássaros da fauna, enquanto as águas barrentas e barulhentas do Corrente subiam lentamente e a paisagem no corredor se transformando em um mar de águas barrentas.
Trepados nas goiabeiras e batendo papos não percebemos que a tarde já estava indo embora, e, quando pegamos a estrada, já estava quase que completamente escuro. A noite sem estrelas e sem lua, já dominava a paisagem. Joselito e eu deixamos as goiabeiras para trás , passamos pela roça do Padim Berto, passamos pelo juazeiro, pelas casas, saímos da fazenda e começamos a andar lado a lado na estrada de areia molhada e em um silêncio tumular devido o medo que sentíamos. Ouvíamos nitidamente os cantos dos insetos e pássaros noturnos , e as cantilenas das nossas sandálias, que ditavam o ritmo dos nossos passos nas areias molhadas. Também ouvíamos a nossa respiração ofegante e tímida! Quando já estávamos chegando no cajueiro, o marco que indicava que já havíamos percorrido metade do caminho de volta, de repente, quem surge do meio do tabuleiro, com um feixe de lenha e um machado às costas? Era o Chico Tussô. Não caguei nas calças porque o meu orifício traseiro travou literalmente.
- Olá meninos, que estão fazendo aqui na estrada a esta hora? Perguntou Chico Tussô. Se respondi não me lembro. Se Joselito respondeu, também não me lembro de ter ouvido. Só sei que caminhamos lado a lado com o sujeito e só sossegamos o coração, quando chegamos na rodagem e avistamos as luzes amarelas da cidade, acesas e a nossa alma logo se acalmou ao adentramos a cidade são e salvos. Chico Tussô seguiu o seu caminho para a vila Formosa onde morava, e nós seguimos rumo à Rua Barbosa, onde morávamos. Além de perdermos uma tarde de diversão e termos passado o medo que passamos na estrada, praticamente perdendo parte da noitada ainda tivemos que ouvir: Demoraram muito! Foram plantar as goiabeiras para tirar as goiabas? Acho que não tivemos respostas para tal pergunta. Refazíamos as nossas forças depois do susto e da tarde de aventura, mas não vou negar que foi cansativa com final assustador.
Vocês devem estar perguntando por que tanto medo do Chico Tussô? Esclareço! Corria a boca pequena que o Chico Tussô virava lobisomem nas sextas feiras santas e nas noites de lua cheia. Davam até os detalhes de como ele procedia para se tronar lobisomem. Nas encruzilhadas onde um jegue se espojava, ele também o fazia. Na rua de cima e no internato, todo mundo morria de medo do Chico. Quem não tinha medo de lobisomem nos anos sessenta no interior do sertão? Hoje sei que tudo não passava de folclore! Era apenas mais uma lenda da cidade! Hoje nós sabemos da verdade. Mas naquela época meus caros, encontrar com Chico Tussô, na estrada e à noite, é como se estivéssemos encontrando com o próprio lobisomem. Pergunto: Se acontecesse com vocês, vocês seriam corajosos ou não? Naquela tarde e noite, é como se tivéssemos encontrado com o peludo frente a frente. Coitado do Chico! Era uma pessoa trabalhadora, inclusive pegava tarefas na Barra, mas ninguém queria voltar para a cidade, sozinho, com ele à noite, e nem ir para a fazenda de madrugada. Na semana santa, nem pensar!