O Rito
O Rito
Dedicado a Juslei Bruno Barreiros
Belvedere Bruno
Havia a espera. Rito de celebração da vida. Noventa anos de Henrique Júnior. Todos aguardavam com ansiedade as surpresas prometidas pelo excêntrico membro da família. Sentada no sofá, admirava a antiga taça de cristal enquanto sorvia meu vinho branco. Os convidados chegavam sem que o aniversariante desse o ar da graça. Senti um quê de ansiedade por parte deles, mas permaneci no meu estado de calmaria. Algumas horas depois, ele surgiu para recepcionar cerca de sessenta pessoas. Parecia um lorde! Continuei bebericando meu vinho, por sinal, de excelente safra. Aos poucos, a casa parecia pequena para tantos convidados, mas, em se tratando de Henrique, isso era previsível, pois contava com a rua para extensão da festa, como sempre!
Após algumas taças, percorri toda a casa, abri uma a uma as portas dos quartos, mexi nos guardados de vovó, bisa e vovô. Não sei como aquele tercinho de bisa ainda resistia! Abri uma sacola vermelha de feltro, amarrada com fita amarela de gorgurão. Havia dezenas de rolos de linhas, sianinhas e rendas, entre outras coisas. Peguei alguns trabalhos que vovó não teve paciência para terminar. Eram obras- primas, quase relíquias, mas eu profanei o santuário. De vovô, peguei a caneta dourada e tentei escrever alguma coisa, porém estava seca, assim como algumas folhas de plantas que vi marcando páginas ao folhear sua Bíblia Sagrada .
Remexi em tudo: coisas e sentimentos. Rememorei festas, ouvi canções de outras eras, palavras de amor, ódio, paixão. Quanta vivência naquela família! Casamentos, separações , lágrimas, traições, partidas...
O tempo ia passando e mais eu mergulhava naquele mundo, buscando pessoas, encantos, surpresas. Contudo, o que eu encontrava, de fato, era uma saudade sem fim.
Saí daquele estado na hora em que ouvi o início do Parabéns a você. Parecia que tudo estava perfeito. Estranho, mas jurava ouvir risadas até dos nossos saudosos “ausentes”. Estaria o vinho alterando meu estado de consciência?
Que raiva senti quando tive a certeza de que você não havia confirmado, pela primeira vez na vida, sua presença em evento familiar de tamanho porte.
Não te perdoo, nem agora nem em outra vida. Nosso próximo encontro será pura negociação. Terá que me convencer, de uma vez por todas, que tinha sérias razões para não celebrar os noventa anos de seu irmão mais velho, aquele pelo qual seu coração sempre pulsara mais forte.
Sem você, nenhuma festa tem cor, sabor, graça. Falta a melodia. Nem o melhor vinho branco do mundo me traz a alegria e a luz que sua presença sempre trouxe à minha vida.
Estamos, no momento, “ de mal”, assim como ficávamos quando crianças. E ainda “torcendo os dedos”, lembra?
Espero, algum dia, em um porto seguro, fazermos as pazes e trocarmos aqueles dois beijinhos estalados. Decerto sentiremos o mesmo aroma de alfazema no ar...