Bacanal nos carnavais

     

     Eu, menino, idos de 1940, ouvi do meu provecto vigário, que o carnaval é uma "festa do satanás". O meu querido pároco era o Clero daquela década: intolerante e santo.
     Naquele ano, uma alegre marchinha carnavalesca fazia o maior sucesso, deixando o padre vigário p-da-vida.
     O velho sacerdote condenava-a em todos os seus sermões; e ainda pedia às suas ovelhas que, ao invés da marcha Lero-Lero, cantassem benditos. 
     Como, por exemplo: "A nós descei/Divina luz.." et cetera, et cetera.
     De autoria do Benedito Lacerda (1903-1958), a música foi gravada, para o carnaval de 1940, por Orlando Silva e Dalva de Oliveira, os dois no auge de sua popularidade. 
     Ao primeiro acorde, ninguém ficava parado. Eu, inclusive, ensaiando os primeiros passos, rumo à vida profana...
     Os que viveram o carnaval de 1940 devem estar lembrados da sua letra: "No Tirol, só se canta assim:/ "Lero-Leruuu! Lero-Leruuu!"/ O nosso "Lero-Lero" é diferente,/ O clima aqui é muito quente,/ E a gente, pra desabafar,/ Canta,canta, até o sol raiar."
     E agora a estrofe que certamente mexia com o meu pudico vigário: "Eu quero, quero, quero/ Quero, quero o teu amor./ Deixa de lero-lero,/ lero-lero, por favor!/ O riso da morena,/Nos prende como anzol,/ O sangue, da morena,/ Abafa o velho sol no Tirol."
     E eu pergunto: que diria o padre Zé Ferreira, um amor de pessoa, ouvindo as músicas carnavalescas do Terceiro Milênio?
     Que diria o meu piedoso vigário vendo a Globeleza, com seus requebros sensuais e trejeitos maravilhosos, invadir os lares brasileiros, católicos ou não, sem pedir licença?
     Até onde o conheci, posso muito bem imaginar qual seria a sua reação.
     De uma coisa, anos depois, eu soube: que ele havia morrido, com quase noventa anos, reprovando, com todo fôlego e decisivo vigor, a marchinha Lero-Lero; inocentíssima, como você, meu caro leitor, viu, se prestou atenção ao que dizem os versinhos acima transcritos.
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     O carnaval não é uma festa do satanás, como pregava o meu cuidadoso vigário. Mas sempre foi, é, e será uma festa em que a sexualidade transborda, apesar da origem religiosa desse contagiante festejo popular.
     Recuando no tempo. Mary Del Priore, in Histórias Intimas (sexualidade e erotismo na história do Brasil), escreveu que o carnaval, no início do século XX, já "era visto como uma festa perigosa, depravada..."
     E dá destaque ao que, em 1933, a imprensa divulgava sobre o comportamento dos foliões daquela época, nos chamados bailes fechados.
     Nesses bailes, "...atos abomináveis se multiplicavam. Éter e cocaína rolavam livremente. 
     Mulheres passando dos cinquenta atracavam-se com `rapazelhos de dezoito´. Noivas esqueciam compromissos e pulavam nos braços dos outros."
     Os cronistas da época denunciavam, ressalta Mary Del Priore, "a promiscuidade reinante nos melhores ambientes, levando senhoras casadas a se comportarem como prostitutas."
     Essas mesmas elegantes damas,terminada a festas, anunciava, em 1927, a Revista Policial, voltavam "aos seus lares", engajando-se em "ligas contra o álcool".
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     Li este capítulo de mais um fantástico livro de Del Priore pensando e duas coisas. 
     Primeiro, que o carnaval de hoje, em determinados  momentos (disse, em determinados momentos), e, claro, mutatis mutandi, repete os carnavais do início do século passado, no que diz respeito á sua permissividade.
Não é, pois, coisa nova.
     Segundo, uma indagação: será que o meu saudoso vigário teria exagerado quando chamou o carnaval de "festa do satanás"?
     Ô, mas para aqueles que gostam de pular, o carnaval é um presente dos deuses; principalmente de Baco.,
     Não os condeno. Sinceramente!

     
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 09/02/2012
Reeditado em 28/10/2020
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