Em Tempo de eleições II

EM TEMPOS DE ELEIÇÃO – II

Helvécio acordou uma semana depois do primeiro turno das eleições na UTI do Jorge Valente em Salvador. Seus familiares, revezando-se na vigília e na torcida, exultaram de alegria. Com o acontecido no dia da eleição, ninguém votara em ninguém o que não deixou de ser uma vitória para Helvécio, pois quase todos votariam contra Lula.

Ao recuperar a razão, Helvécio pensou ter ouvido a parte mais vibrante das “Quatro Estações” de Vivaldi. Olhou em volta; todos sorriam. Na face de cada filho, no olhar carinhoso da mulher, ele via uma imensa cavalgada de felicidade e as “Quatro Estações” transformaram-se na “Cavalgada das Valquírias”. seus “clássicos preferidos. Afastou Vivaldi com um aceno de mão e mergulhou na realidade. O seu corpo e a sua mente, antes tão doidos, estavam agora muito doídos,

Em casa os cuidados redobraram:

- Pai, cuidado! Marido olha este esforço!

Ele virara um “cabra” de vidro. A alegria pela vitória de Lula, fazia com que ele suportasse tudo aquilo enquanto ele arquitetava um plano para driblar a família e ir votar no segundo turno. E só faltavam 10 dias.

O dias passavam e ele convalescendo. A cada dia ficava mais forte, saudável. A palidez cedera lugar a uma cor misturada entre o vermelho e o roxo das profundas olheiras que não lhe abandonavam e que ele achava um charme.

- Só eu e o Malan temos olheiras tão charmosas.

As suas olheiras amanheciam roxas e desapareciam vermelhas nas tarde insones.

Passavam-se os dias naquela modorra. Os programas eleitorais, mornos e sem graça. Lula disparado na frente. Nada emocionava Helvécio.

- Mulher, desliga essa droga de TV. “Zóio sapocado” – era assim que ele tratava Zé Serra – está cada vez mais idiota e Lula perdeu o poder ofensivo. Tá parecendo um ogro com medo de tirar docinho de criança. Antes ele nem se importava em ser chamado de “comedor de criancinha”. Tomara que ele não se transforme em canibal de almas.

Helvécio mostrava o seu lado radical.

Dia 27 de Novembro, 6 horas da manhã.

- Pai, você não precisa votar. Você vai se emocionar. O médico falou... Se precisar, nós justificaremos o seu voto.

- Tá bem, tá bem. Vocês não vão votar?

- Vamos e prometemos que votaremos em Lula, só para compensar o seu voto.

- Pensam que é pra me agradar. Agora é fácil. O “menino do Rio” apoia Lula, “Zoio sapocado, tá prá lá de f...., O descontrolado”(Cyro), tá pra lá de lá de f & f: apoia Lula. Tá sem perspectivas. Vai terminar vendendo sandálias ”Havaianas” para a Patrícia ou criar barba e virar petista e terminar Ministro. Nisso ele é bom. Um camaleão. Votar em quem ?

8 horas da manhã. Helvécio carregou o seu tocador portátil de CD e colocou na varanda. Selecionou os CDs: The Doors, Betânia, Bing Crosby, Bob Dylan, Antonio Brasileiro – era com essa intimidade que ele tratava Tom Jobim – e Dorys Day. Não achou o CD de Maysa. Nem revoltou-se, pois não podia zangar-se por pouca coisa. Aboletou-se numa poltrona e sentiu saudade da sua velha eletrola, onde ele colocava 10 discos de Orlando Silva de uma vez em 78 RPM, ou long- plays de Valdir Calmon, tocando piano na boite Arpége.

Já que o médico permitia, colocou cinco pedrinhas de gelo, uma pequenina dose âmbar de Old Eight e começou a ler o livro “Contos de Agosto” do seu amigo Pablo Sales, cujo lançamento coincidiu com o seu infarto pitoresco, como ele denominava a sua meia morte.

Lia. Apenas lia. A casa tinha sempre alguém monitorando Helvécio. Saia um deles, levantava o polegar e o indicador formando a letra “L” e dizia ...

- Lula na cabeça

Tinha sempre alguém de olho nele. Abriu o livro. Capa Vermelha. Provocação? leu a dedicatória:

“Helvécio, divirta-se com os meus contos, pequena porta da literatura cruzalmense, Te amo, Pablo.

Ganhou o dia. “Começou lendo as abas e prefácio: Nelsinho, Narlan e Moisés falavam dos contos de forma que deu vontade de comê-los

Leu. Vez por outra levantava os olhos do livro e via a procissão vermelha, coalhando a rua Mata Pereira. Todos, agora, “eram” Lula.

Leu. 11 horas:

- Helvécio, seu suco. - Vermelho, baterraba – bom para anemia – seu remédio Higroton 50 – bom para a pressão.

Tomou obedientemente. Lia “Profanos” – as rachaduras escalavam prédios, saltavam ao céu e derramavam chuva”.

12 horas: - Helvécio, Almoço.

Não quis. Lia e lia de forma compulsiva, febril, incessante, viciado, inebriado e atônito.

- Porra! Que escritor! pensou alto. A mulher, na janela, o repreendeu.

- Você dizendo pornografia?

- Isto não é pornografia mulher é o encantamento de minha alma extravasando mil acontecimentos adquiridos neste livrinho vermelho ... ou seria vinho?

- Na rua carros passavam cheios de eleitores agitando bandeiras vermelhas. Agora todos “eram” Lula.

14:50: Estava cansado. O livro pesava-lhe nas mãos como se fosse uma pluma recheada de pesadas emoções. Leu. Pagina 109 – a última. Na eletrola, Morrison cantava The End. O ruído das pás do helicóptero dos Doors roubaram-lhe os sentidos. “Gays têm uma sensualidade gratuita” Adormeceu. A mulher acomodou a sua cabeça no travesseiro.

17:30. Acorda. As pás do ventilador em sua frente eram o seu helicóptero. Voar para onde com aquela coisa que lhe olhava fixamente, rodando apenas 180 graus? Olha o relógio: 17.35. Não votaria mais. Conforma-se. Pensa alto:

- Não importa, as uvas nunca mais serão verdes.

Meia noite:

- Mulher, temos um novo presidente. Que Deus o ilumine.