O astro do show
- E agora, preparem-se para meu último truque! – gritava o rapaz vestido de mágico, enquanto retirava o pano que cobria aquela caixa retangular que todos conhecemos – Irei, utilizando da mais pura magia, serrar esse jovem ao meio!
João sabia que não deveria estar ali, deitado dentro daquela caixa apertada. Não imaginava que, depois de tudo que acontecera, terminaria daquela forma, simplesmente serrado ao meio. Olhou ao redor, constatando uma grande quantidade de crianças sorridentes, esperando o ilusionista realizar seu truque mais perigoso. O que elas não sabiam, no entanto, é que aquele rapaz não era um profissional. Z, como gostava de ser chamado, abandonara seu emprego para seguir seu sonho: se tornar um mágico. O real problema é que ele não tinha a mínima ideia de como fazê-lo. Decidiu publicar anúncios em jornais locais se voluntariando a comparecer em festas infantis. Já havia realizado diversas apresentações e, como característica particular de seus serviços, alguém sempre saía ferido. No caso, João teria a oportunidade de presenciar a primeira vez que Z realizaria o truque de serrar uma pessoa ao meio. É óbvio que o jovem azarado apreciaria o show de forma mais descontraída se a pessoa em questão, dentro de minutos cortada ao meio, não fosse ele.
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João odiava crianças. Nunca tivera jeito para lidar com os, segundo ele, pequenos monstrinhos. Fazia de tudo para evitar comparecer a festas infantis ou a reuniões de família, geralmente lotadas de primos e primas desconhecidos até então. Porém, ali estava ele, distribuindo bexigas em formato de animais para diferentes tipos de crianças, desde as mais comportadas até aquelas que reclamavam da quantidade de patas que sua bexiga em forma de aranha possuía. João sabia que não podia ir embora, já que aquela viagem que ele tanto planejara dependia daquilo. “Meu despertador tinha que me sacanear justo hoje?“, pensava ele, enquanto tentava ao máximo se equilibrar ao passo em que três ou quatro crianças corriam em volta de suas pernas.
- João, venha aqui. – gritava uma mulher, acenando a mão direita e fazendo movimentos para que o garoto se apressasse.
A mulher era sua professora de História. João sempre soube que o fato de ser vizinho de uma de suas professoras ainda o causaria problemas. No caso, ele estava prestes a provar essa teoria.
- Preciso de mais um favor. O mágico precisa de um ajudante, e como sua assistente está doente (provavelmente artimanha do ilusionista em questão) você vai participar do número de encerramento dele. – explicava a professora, num tom tão afirmativo que João não tinha a mínima chance de questionamento.
- Rapaz, é simples. Você só precisa entrar nessa caixa e ficar quietinho. Deixa que eu faço todo o trabalho. – garantia Z, enquanto parecia escolher a serra mais afiada para finalizar a apresentação de uma maneira literalmente inesquecível.
Após muito relutar, João acabou por entrar na caixa. Pensava apenas no que diabos havia feito para merecer terminar daquela forma.
- É hora do show! – gritou o “mágico”, enquanto cobria a caixa com um pano mal cheiroso e sinalizava para que as cortinas do palco fossem abertas.
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João tinha certeza que quebrara uma ou duas costelas. Apesar do teor exagerado, ele não aguentava mais carregar aquelas caixas. “Afinal de contas, o que arrumaram para esse aniversário? Bigornas como lembrancinhas?” – reclamava ele enquanto descarregava o caminhão responsável pela entrega do material para a festa. No caso, a festa de aniversário para o filho de sua professora de história. O garoto faria cinco anos e, aparentemente, aquilo era razão para uma comemoração gigantesca. A quantidade de bexigas que vira em toda a sua vida não chegava nem perto do que havia dentro daqueles caixotes.
- João, depois de descarregar, só preciso que você encha as bexigas, ok? – dizia a professora, sorrindo, enquanto desfilava entre as caixas, contando e anotando numa prancheta um número grande demais para ser citado.
O rapaz começou a assoprar as bexigas, numa animação muito desanimada. Apesar do trato que havia feito com sua professora, julgava que ela estava começando a abusar de sua boa vontade. Tinha certeza que passaria a tarde toda ali, correndo ainda o risco de perder sua novela favorita. “Justo hoje que vão revelar quem é o assassino?”, lamentava João, alternando entre encher as bexigas e soltar o ar de dentro delas, provocando aquela reação em que elas voam descontroladamente. Passou grande parte da tarde encarregado de organizar a decoração da festa e, após terminar, suspirou aliviado por ser responsável apenas por ajeitar o local, odiaria ter de ficar e ajudar durante a festa.
- João, preciso que você ajude durante a festa. – novamente, sua professora de história, agora determinada a destruir completamente a vida do pobre rapaz.
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- Está atrasado. – disse a professora, enquanto João tentava entrar sorrateiramente na sala – A prova começou a trinta minutos. Conhece muito bem minhas regras, sinto muito.
João estava ferrado. Precisava fazer aquela prova, ou então reprovaria em história e, consequentemente, perderia aquela viagem que seus pais lhe prometeram. Não gostava nem um pouco de história. Tirara notas baixas em todas as outras provas, e seguia com o pensamento de que tudo que passou, passou. Porém, decidiu que iria se recuperar no teste final. Estudara durante semanas, assuntos desde o Apartheid à Segunda Guerra Mundial. Agora sabia que nossa industrialização somente aconteceu devido àquela revolução de que todo mundo fala e que a Tríplice Entente não era, de forma alguma, liderada pela Alemanha. Decidiu usar de toda a sua habilidade de persuasão para conquistar a compaixão de sua professora favorita (viram?).
- Tudo bem, tudo bem. Deixo você fazer a prova, porém, com uma condição. Vou receber uma entrega à tarde e preciso de uma ajudinha pra descarregá-la. É coisa rápida, o que acha?
João não pensou duas vezes e aceitou com prontidão. “O que são duas ou três caixas?”, pensava o rapaz, enquanto sentava em sua carteira e começava a escrever sobre a ditadura e o plano Collor. Terminara a prova em tempo recorde e saíra sorrindo da sala. Mal sabia ele que o restante do dia lhe reservava planos que combinariam mais com um choro desesperado a um sorriso descontraído.
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João fechou os olhos e passou a ouvir apenas a madeira sendo serrada, de forma cruel e assustadora. Sentia a caixa tremer e seu corpo estava tão paralisado que ele não conseguia abrir os olhos de maneira nenhuma. Ouvia apenas os suspiros das crianças e gritos desesperados partindo daquelas mais assustadas. O tempo parece que não passava, e João começava a se convencer de que aquele era um jeito super legal de morrer. “Cortado ao meio, isso sim é radical”, pensava o jovem. De repente, após um movimento do mágico, as crianças começaram a encher o ambiente com aqueles “Ohhhh” característicos de shows de mágica, quando o climáx da apresentação acontece. João não conseguiu abrir os olhos para conferir o que estava acontecendo, porém sabia que as crianças estavam satisfeitas e ele, surpreendentemente, ainda estava vivo. Após outro movimento do mágico, aplausos surgiram na plateia. Crianças gritando eufóricas, todas se perguntando como ele havia feito aquilo. João esperou alguns segundos para abrir os olhos e constatar que ele ainda estava inteiro. A caixa fora aberta e ele pôde sair dali, andando, como se fosse a coisa mais incrível que ele sabia fazer.
Mais surpreso do que João, estava Z. Ele não tinha a mínima ideia de como o número havia dado certo, porém rapidamente se convenceu de que ele devia ser, de fato, um mágico mais talentoso do que imaginava.
Ainda um pouco abalado por tudo que havia acontecido naquele dia, João se imaginava com sorte. Afinal de contas, havia sobrevivido a um atraso, uma prova de história, uma festa de aniversário e um truque de mágica barato. Ele imaginava que, apesar de tudo, ele não tinha do que reclamar.
Mal sabia o rapaz, no entanto, que o futuro lhe reservava uma daquelas surpresas que insistem em nos perseguir. O resultado do teste de história, responsável por tudo o que acontecera, faria o rapaz ter certeza de que o universo passa grande parte de seu tempo organizando pegadinhas de mau gosto. E João, bem, João será sempre o astro do show.