Aos primeiros e últimos passos
Aos últimos passos, calos de um longo dia, saliências que agora me doem, mas em outrora me deixaram extasiado pela companhia de quem me levara. História, crônica que me ocorreu nem mais nem menos, mas desta forma:
Deitado, entre a ansiedade e o tempo, olho os ponteiros do relógio, minutos que passam lentos, maltratam meu cansaço. Fadiga que se finda ao ouvir o alarme. Pronto! Nove e meia, me arrumo como as águas entre as rochas, pego todas as coisas que preciso, como: relógio, carteira, dinheiro... Cadê o dinheiro?! O pavor que me esfriava a espinha me subia à cabeça e acariciava meu coro cabeludo. Como poderia eu sair apenas com cinco reais sendo que teria que pegar cerca de seis conduções?
Tento agilizar, ligo para meu pai e: “Onde você está pai? Estou precisando de dinheiro, uns dez reais!” “Poxa filho, estou sem nada aqui, pede para a Marli.” Marli é a moça que trabalha aqui em casa. Tudo bem, a Marli era a única salvação! E mais uma vez não consegui. “Que maravilha!” eu repetia várias vezes pelo caminho ao metrô.
Pego o trem que me levaria ao encontro da moça bela, Sabrina. A calma que ela me transmite fez com que esquecesse o problema e assim fui.
Ao encontrarmo-nos, fomos direto ao ponto de ônibus, já dentro dele percebi que o dinheiro não daria pra todas as conduções e mais, ainda não tinha almoçado, estava morto de fome. Em meio ao desespero e a pontada da fome me virei para o lado e pedi ao moço um trocado para pegar condução. Consegui dali extrair um real, o suficiente para beber uma água ou comprar um espetinho na frente da banca de jornal.
Chegando ao ponto desejado, Sá (Sabrina) disse que daria pra irmos a pé, embora fosse longe. Eu, sem grana e ainda nada cansado, aceitei a proposta e fomos.
Ruelas estreitas de Brasilândia, uma vila próxima ao metrô Santana, foram cenário de nosso passeio. Eu, bastante astuto, fui com uma camiseta preta (uma ótima cor para andar sob um sol ardente), calça e sem qualquer garrafa ou outro recipiente com água. Andamos cerca de uma hora, perguntando sempre onde fica o CEU (Centros Educacionais Unificados). As pessoas, informantes, eram bastante simpáticas, praticamente nos levavam até o local. Um menino sentado defronte a uma das inúmeras casas de tijolo aparente deu-nos um copo de água fresca para agüentarmos o restante do caminho.
Mais alguns instantes andando, no sobe e desce das ruas, chegamos ao ponto esperado. Uma espécie de clube da prefeitura, lotado de crianças, adultos e idosos, mas principalmente crianças, pequenas pessoas que, ainda crêem em muitas coisas, enchem os olhos de brilho ao ver a peça que o CEU proporcionou-lhes neste dia. Perguntei a alguns destes se gostavam daquele local, a resposta foi unânime, todos amam ali, pois aprendem, brincam, nadam, tudo em segurança. Foi muito gratificante vê-los sorrirem ao ver a encenação dos atores, valeu a dura caminhada!
De lá saímos e pegamos uma perua que nos levaria próximo à casa do Unilson, meu amigo. Do ponto até sua casa demoramos cerca de trinta minutos e lá ficamos. A Sabrina foi embora, eu por lá dormi por falta de dinheiro.
Que saudade bateu ao ver a Sá desaparecendo entre as flores do térreo do edifício do Unilson, sentimento que marcou aquela noite quente.
No dia seguinte, levantei-me e voltei para a casa, com o mesmo metrô que me levara, mas sem o mesmo propósito e a vontade de chegar.
Foi a primeira vez que saí com cinco reais e ainda voltei com dois reais e dez centavos. Impressionante!
Que bom descalçar os tênnis e sentar pra descansar em minha cama. Olhar os estragos que aquela caminhada causou, pequenas bolhas cheias de água, proteção de nosso corpo, marcas que por um bom tempo ficarão. Mas não ficarão pra sempre como as lembranças do tal dia, os olhos-criança que brilhavam mais que as estrelas que o CEU de Brasilândia guarda, a doce voz da Sá me dizendo que me ama e as palavras que dela saíam e dançavam, brincando, dentro de meus pensamentos.
Aos primeiros passos, desejos de um apaixonado, sentimento que agora me mostra, mas em outrora escondia o que sentia por ela, pessoa que em menos de 24 horas me ensinou mais que em 17 anos.