Uma Paixão Desarvorada
- Oi, Helena!
- Ai, dona Zuleica! Que mania de me assustar!
- Assustar? Eu só te cumprimentei!
- Mas, assim? De repente!? Chega de fininho... Parece um fantasma!
- De fininho, Helena!? Como é que chego de fininho com esses sapatos?
- É verdade! Parecem aqueles de sapateado!
- Então!?
- É... É que eu estava aqui assuntando e nem te ouvi chegando.
- Assuntando o quê?
- Ah, dona Zuleica... Xá pra lá. Xeu cuidar do meu almoço que eu ganho mais.
- Tá bom.
- Puxa! Nem vai insistir um pouco?
- Nem! Tô morrendo de fome. O que tem de comida?
- Credo! Que falta de interesse em meus assuntos internos...
- “Assuntos internos”! Esta é boa! De onde você tirou isso, Helena?
- Ouvi ontem na novela.
- Quem diria? Novela também é cultura!
- É nada! Eu sei que é só besteirada. Mas achei bonito.
- Tá bem. Diga aí...
- Peixe à milanesa, arroz...
- Não, Helena! Diga aí sobre esses seus assuntos internos.
- Ah! Sabe o que é?
- Não! Mas você vai me dizer.
- Então! É que o Roberto...
- Ih! Brigaram de novo!
- Não, não! Estamos bem. Mas é que...
- Que?
- A senhora sabe que eu amo o Roberto. Quase morri de chorar quando a gente separou.
- Ô! Como sei!
- Mas eu vejo essas paixões nas novelas, nos filmes... A mulherada fica doida, larga tudo: casamento, filhos, família, amigos. Sabe?
- Sei.
- Então! Eu nunca tive uma paixão assim!
- Dessas de queimar reino e cavalos?
- Que cavalo, dona Zuleica? Nem cachorro eu tenho!
- Ai, Helena! É uma expressão! Quer dizer que, por esse amor, você faria qualquer coisa!
- Ah! Então é isso.
- Mas... E esse seu amor pelo Roberto não é assim?
- É, não! É pé no chão. Sabe? Beleza e paciência?
- Hein?
- Deu certo, beleza! Senão, paciência!
- Ai, Helena! Você é ótima.
- Nossa, dona Zuleica! Essa piada é velha!!
- Não sou boa de piadas, Helena. Vai ver até já ouvi, mas eu esqueço.
- Sei.
- Mas, enfim... Você nunca teve uma paixão desarvorada?
- Não.
- Que bom, né?
- Ah, dona Zuleica, não sei. A senhora já teve?
- Acho que sim, quando solteira. Tudo é muito intenso quando se tem dezesseis anos.
- E aí?
- E aí, nada. O pai dele era militar e foi transferido antes que eu queimasse meus navios.
- Ô dó! O que a senhora fez?
- Tentei ir atrás. Minha mãe logo me mostrou que eu precisava mesmo era de um porto seguro.
- A senhora foi pra lá?
- Pra onde, Helena?
- Pra Porto Seguro?
- Helena!
- Ah! Desculpa! Agora entendi. É mais uma dessas suas expressões...
- Isso.
- Nunca mais soube dele?
- Não.
- Ainda pensa nele?
- Sempre!
- Jura!? E seu Elísio!?
- Ah, Helena... Mesmo a paixão mais furiosa desaparece diante de um amor verdadeiro, que é o que tenho hoje com o Elísio. Penso com carinho, saudades, mais da minha juventude do que dele, propriamente dito.
- Mas ele sabe?
- Elísio?
- Sim!
- Sabe!
- E não tem ciúmes?
- Acho que não. Ele também já viveu loucuras juvenis.
- Seu Elísio?! Nunca imaginei!
- Por que, Helena!?
- Ah! Seu Elísio é tão...
- Tão o quê, Helena?
- Senhor. Certinho. Sei lá. Não parece alguém capaz de cometer loucuras de amor.
- O tempo passa, Helena! Para todos nós. A gente amadurece... Você também vai ficar coroa.
- Puxa! E nunca vou viver uma paixão de novela?
- Não sei, Helena. Para quê?
- Ah! É tão bonito!
- Bonito nas novelas, nos filmes! Na vida real, só atrapalha, você perde o foco, a concentração, não faz nada direito e...
- Vixe! Que cheiro é esse?
- Ah, não! O arroz!
- Queimou, Helena!?
- Todinho, dona Zuleica... Será que com cebola?...
- Ê, Helena! Tomara que você nunca se apaixone perdidamente por ninguém!
- Ô, dona Zuleica! Isso é coisa que se deseje?
- Pra você? Com certeza! Se, com pé no chão, beleza e paciência, você já vive no mundo da lua, imagina onde vai parar apaixonada!?
- Em Marte!?
- Não sei. Mas se eu não tiver o que comer nos próximos cinco minutos, posso garantir que você não vai viver o bastante para descobrir.
- Credo, dona Zuleica!!
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Nunca/Sempre
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