Perdendo a namorada
Perdendo a namorada
Não sei se essas coisas têm um começo, mas, suponho, tudo começou quando eu disse que ia visitar um amigo e ela me perguntou quem e aonde, respondi o Fulano, você não conhece, ele está na psiquiatria da Vila Mariana. Ela me deu um olhar fuzilante. Pensei, ora essa, algumas vidas são certezas, outras são apostas, não se deve desistir de nenhuma, já vi muita aposta preponderar e também vi certezas virarem cinzas. Enfim, tudo isso aconteceu num curto espaço de tempo. Depois eu contei que tive de sair de lá antes da chuva, e camelei tantos quarteirões até o ponto de ônibus, nesse trecho me empolguei, vocês sabem, mulheres adoram façanhas, e eu disse que ao avistar o Grajaú no horizonte saí em disparada, porque era o Grajaú ou a chuva, além do que eu estava sem os meu óculos, corri tanto e com tal empenho que me vi levando o Ouro em 2014. Vocês sabem, mulheres possuem um relativo senso de humor. Ela fez questão de me corrigir quanto à data, fiquei quieto, porque querendo ou não a corrida que eu dei da Sena Madureira até o ponto na Domingos de Moraes foi praticamente olímpica, uma pena não ter saído na televisão nem nada.
Ela me indagou o que eu achava da medida das sacolinhas, que talvez fosse uma coisa boa, afinal estavam salvando o planeta. Sorri silenciosamente, como o planeta deve ter sorrido, e me lembrei de um pensamento antigo, “se queres saber onde está a verdade, siga o dinheiro”. Depois, com medo de dizer alguma coisa (mulheres...), disse que a cena, na porta do supermercado, me lembrou aquelas reportagens sobre saques, com as pessoas carregando os produtos na mão. Foi tudo o que eu disse, para receber outro olhar fuzilante.
Combinamos, então, de ir ao cinema. Ela queria assistir “A Árvore da Vida”. Agora urge ressaltar um ponto crucial. Todo relacionamento prescinde de uma base honesta para vingar. Embora eu não tenha dito isso, expliquei que quem fez esse filme estava sob efeito de alguma coisa inédita e extremamente perigosa, que era preferível assistir “Sapatinhos Vermelhos”, pelo menos o próprio Scorsese afirma que esse trabalho influenciou sua carreira, etc. Não existe namoro sem discussão.
A argumentação dela era a de que eu, provavelmente, havia assistido a Árvore via camelôs, o que consistia em financiar um delito. A minha argumentação foi mais extensa. Em primeiríssimo lugar assegurei que deixara de ser usuário de camelôs de uns dois anos para cá, não por culpa deles e sim em virtude do produto. Ou dos produtos. E aí filosofei de que algo muito grave está ocorrendo no hemisfério norte, porque não é possível a quantidade de porcarias que esses caras colocam no mercado. Depois confessei que sim, que num momento de fraqueza me deparei com um camelô no viaduto da Beneficência Portuguesa, e ele alardeava o filme, falava sobre os atores e, enfim, não resisti. E eu disse mais. Falei que na minha modesta opinião essa história de delito (com relação ao camelô) me remete à situação toda, e que a situação toda (quando a gente namora tende a ficar prolixo) me parece a de um sujeito com tuberculose, cirrose e SIDA sendo tratado com suco de beterraba e às vezes, num átimo de boa vontade, lhe cortam as unhas dos pés e lhe dão vitamina B3. Para completar, aventei que o camelô tem família, mora com muito favor num local em que nem ela e nem eu, nem em terríveis pesadelos, gostaríamos de morar, e que os caraminguás de um filme cá outro lá bem podem significar uma barriga cheia no fim do expediente.
Pessoas da minha idade deveriam se ater ao tricô e ao carteado. Que é que se ganha levantando bandeiras? Nada, nem mesmo uma mexerica. Bem, eu ganhei mais um olhar fuzilante. E, depois do olhar, uma declaração sobre a Rita Lee, na minha opinião, um tanto pejorativa. Ouvi com bons modos, com as duas orelhas e os olhos um tanto vazios, e depois, ao perceber que era a minha vez de falar, porque, cá entre nós, nada me restava senão a palavra, principiei mansamente, aventando que por ventura a situação esteja amena em Aracaju, daí a quantidade de autoridades no evento indique duas coisas: uma, ausência de bandidagem na cidade ou, a bandidagem decidiu que neste dia, antes de exercer suas atividades, talvez fosse um bom negócio relaxar assistindo um show. Um show de verdade, com músicos e tudo.
Ela retrucou que ironia não leva a nada e eu tripliquei que ironia, aos fadados ao carteado e ao tricô talvez seja uma saída, uma espécie de defesa mental contra a diversidade do absurdo.
Para finalizar, argumentei que a minha ironia repousava sobre um ângulo da questão, somente, pois no tocante a Rita, vejo-me compelido a resumir o escopo em poucas palavras: artista maior, integrante do patrimônio cultural da nação. Ponto. Ponto e vírgula, pois ainda por cima zzzzzzzzzzzzz....
- Ô meu, acorda, você dormiu de novo! – exclamou o cobrador.
Esfreguei os olhos, tentando me compenetrar. De uns tempos para cá tem acontecido toda a semana. Só acordo no ponto final.
- Sabe o que é isso? – indagou ele - esse cansaço todo a essa hora do dia? Síndrome Aguda do Diálogo Interno.
Para completar, apareceu o motorista.
- Vê se você consegue mudar esse padrão – advertiu ele – uma hora dessas vem um nóia e rouba a sua mochila. Sorte sua que a gente tá de olho. Ah, acho que você já sabe, mas não custa repetir: nós não tivemos essa conversa, certo?
- Certo – disse eu, ajeitando a mochila.
(Imagem: Marija Jevtic)
Perdendo a namorada
Não sei se essas coisas têm um começo, mas, suponho, tudo começou quando eu disse que ia visitar um amigo e ela me perguntou quem e aonde, respondi o Fulano, você não conhece, ele está na psiquiatria da Vila Mariana. Ela me deu um olhar fuzilante. Pensei, ora essa, algumas vidas são certezas, outras são apostas, não se deve desistir de nenhuma, já vi muita aposta preponderar e também vi certezas virarem cinzas. Enfim, tudo isso aconteceu num curto espaço de tempo. Depois eu contei que tive de sair de lá antes da chuva, e camelei tantos quarteirões até o ponto de ônibus, nesse trecho me empolguei, vocês sabem, mulheres adoram façanhas, e eu disse que ao avistar o Grajaú no horizonte saí em disparada, porque era o Grajaú ou a chuva, além do que eu estava sem os meu óculos, corri tanto e com tal empenho que me vi levando o Ouro em 2014. Vocês sabem, mulheres possuem um relativo senso de humor. Ela fez questão de me corrigir quanto à data, fiquei quieto, porque querendo ou não a corrida que eu dei da Sena Madureira até o ponto na Domingos de Moraes foi praticamente olímpica, uma pena não ter saído na televisão nem nada.
Ela me indagou o que eu achava da medida das sacolinhas, que talvez fosse uma coisa boa, afinal estavam salvando o planeta. Sorri silenciosamente, como o planeta deve ter sorrido, e me lembrei de um pensamento antigo, “se queres saber onde está a verdade, siga o dinheiro”. Depois, com medo de dizer alguma coisa (mulheres...), disse que a cena, na porta do supermercado, me lembrou aquelas reportagens sobre saques, com as pessoas carregando os produtos na mão. Foi tudo o que eu disse, para receber outro olhar fuzilante.
Combinamos, então, de ir ao cinema. Ela queria assistir “A Árvore da Vida”. Agora urge ressaltar um ponto crucial. Todo relacionamento prescinde de uma base honesta para vingar. Embora eu não tenha dito isso, expliquei que quem fez esse filme estava sob efeito de alguma coisa inédita e extremamente perigosa, que era preferível assistir “Sapatinhos Vermelhos”, pelo menos o próprio Scorsese afirma que esse trabalho influenciou sua carreira, etc. Não existe namoro sem discussão.
A argumentação dela era a de que eu, provavelmente, havia assistido a Árvore via camelôs, o que consistia em financiar um delito. A minha argumentação foi mais extensa. Em primeiríssimo lugar assegurei que deixara de ser usuário de camelôs de uns dois anos para cá, não por culpa deles e sim em virtude do produto. Ou dos produtos. E aí filosofei de que algo muito grave está ocorrendo no hemisfério norte, porque não é possível a quantidade de porcarias que esses caras colocam no mercado. Depois confessei que sim, que num momento de fraqueza me deparei com um camelô no viaduto da Beneficência Portuguesa, e ele alardeava o filme, falava sobre os atores e, enfim, não resisti. E eu disse mais. Falei que na minha modesta opinião essa história de delito (com relação ao camelô) me remete à situação toda, e que a situação toda (quando a gente namora tende a ficar prolixo) me parece a de um sujeito com tuberculose, cirrose e SIDA sendo tratado com suco de beterraba e às vezes, num átimo de boa vontade, lhe cortam as unhas dos pés e lhe dão vitamina B3. Para completar, aventei que o camelô tem família, mora com muito favor num local em que nem ela e nem eu, nem em terríveis pesadelos, gostaríamos de morar, e que os caraminguás de um filme cá outro lá bem podem significar uma barriga cheia no fim do expediente.
Pessoas da minha idade deveriam se ater ao tricô e ao carteado. Que é que se ganha levantando bandeiras? Nada, nem mesmo uma mexerica. Bem, eu ganhei mais um olhar fuzilante. E, depois do olhar, uma declaração sobre a Rita Lee, na minha opinião, um tanto pejorativa. Ouvi com bons modos, com as duas orelhas e os olhos um tanto vazios, e depois, ao perceber que era a minha vez de falar, porque, cá entre nós, nada me restava senão a palavra, principiei mansamente, aventando que por ventura a situação esteja amena em Aracaju, daí a quantidade de autoridades no evento indique duas coisas: uma, ausência de bandidagem na cidade ou, a bandidagem decidiu que neste dia, antes de exercer suas atividades, talvez fosse um bom negócio relaxar assistindo um show. Um show de verdade, com músicos e tudo.
Ela retrucou que ironia não leva a nada e eu tripliquei que ironia, aos fadados ao carteado e ao tricô talvez seja uma saída, uma espécie de defesa mental contra a diversidade do absurdo.
Para finalizar, argumentei que a minha ironia repousava sobre um ângulo da questão, somente, pois no tocante a Rita, vejo-me compelido a resumir o escopo em poucas palavras: artista maior, integrante do patrimônio cultural da nação. Ponto. Ponto e vírgula, pois ainda por cima zzzzzzzzzzzzz....
- Ô meu, acorda, você dormiu de novo! – exclamou o cobrador.
Esfreguei os olhos, tentando me compenetrar. De uns tempos para cá tem acontecido toda a semana. Só acordo no ponto final.
- Sabe o que é isso? – indagou ele - esse cansaço todo a essa hora do dia? Síndrome Aguda do Diálogo Interno.
Para completar, apareceu o motorista.
- Vê se você consegue mudar esse padrão – advertiu ele – uma hora dessas vem um nóia e rouba a sua mochila. Sorte sua que a gente tá de olho. Ah, acho que você já sabe, mas não custa repetir: nós não tivemos essa conversa, certo?
- Certo – disse eu, ajeitando a mochila.
(Imagem: Marija Jevtic)