_O cachorro “véi”

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Penas voando, espalhadas no asfalto. Observando pelo retrovisor, o motorista registra a sequência de imagens.

Baratas, moscas e ratos mortos pertencem ao cotidiano do homem. Presenciar corpos de animais ao longo das estradas tem se tornado comum, mas aquela pequena avezinha não deveria ter partido tragicamente. O cenário era desolador[1]. Era pena pra todo lado. Tênues[2] e singelas penas marrons.

Eu a matei! – pensa o motorista.

O animalzinho não teve oportunidade de defesa. No calor da manta asfáltica, voou. Buscava a liberdade da vida quando se deparou com o peso da morte. O impacto do choque foi pontual; o posterior esmagamento, fatal.

Bendita fatalidade! – angustia-se o motorista.

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1998. Pavimento superior do sobrado da família De Oliveira. Riajin, terceiro filho do casal Ray e Maísa, acaba de matar insolente ratazana. A esposa e as filhas do casal estão satisfeitas e aliviadas:

– Matou, pai, matou?!

– Matou, homem? Ratos me deixam enojada!

– Matei, filha! Matei o bichano, mulher. Não tenho medo de ratos, ora! (ratinhos novos deixavam o marido arrepiado de nojo, disso não sabiam).

– Oba! Os ratinhos brancos são bebê, pai? Eles mamam? – interpela a caçula.

– São filhotinhos, filha.

A outra pergunta ficou sem resposta. O pai não sabia se mamavam! Que comiam folhas de papel até que sabia, mas em relação a mamar... Filhos estão sempre prontos para surpreender com perguntas difíceis de serem respondidas. Pobres e indefesos pais somos todos nós.

Matar baratas também tem lá suas vantagens, dignas de elogios:

– Tenho nojo desse bicho! Baratas e ratos são insuportáveis!

– Eu também.

– Mas o mundo sem as baratas perderia a graça! Existe gente-barata, sabiam? – desabafara o marido à época desse feito heroico.

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E a velha, malfadada e conhecida mosca. Quem nunca se regozijou[3] ao retirar do prato alguma dessas famigeradas? Depois do asco[4], a satisfação é quase sempre acompanhada de olhares curiosos, sequiosos[5]. Retirar mosca da sopa sozinho, sem testemunhas, é vitória sem graça! O mais excitante da cena está no clímax e reverberação[6] do ego:

“Eu matei!” – se outro matar não tem graça. Nessas horas a gente faz questão de ser o centro das atenções. Se pudesse, exigiria de todas as moscas: se tiverem que pousar que pousem no meu prato!

Corpos de bichos mais robustos são vistos nas estradas, é verdade. Bovinos, caprinos, equinos, felinos são aparições indesejadas durante viagens. Quando abatidos em acidentes, ficam despercebidos[7] – os olhares sempre insensíveis de mulheres e de homens apressados ignoram os corpos estendidos no chão. Passamos e desaparecemos. Nunca vi foi gato morto nas estradas por onde andei.

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– Por que você odeia gatos? – pergunta a esposa, depois que um gato preto cruza o caminho – você se derrete todo com cachorro, mas com gatos...

– Gato é falso, mãe! – interrompe a filha do casal. Os cachorros são leais, fiéis.

De imediato, uma expressão saltou aos olhos do marido: “gato-véio”. Será? – pensou, externando um sorriso de canto a canto da boca.

– Do que está rindo? – perguntou a esposa.

– Nada não. Era uma teoria, teoria que...

– Diz!

– Você vive nos chamando, a nós homens, de “cães-vira-latas-comedores-de-sabão”. Segundo o que ouvi, os cães são fiéis! Já os gato-véio...

– Lá vem você com justificativas. Homem safado é cachorro mesmo e pronto!

– Mas é verdade, ora! Homem safado é cachorro. Mulher descuidada demais é gato-véio. Será que essas expressões possuem seu gênesis nas ações dos bichos? Cães fiéis; gatos falsos. Eita, raça desunida!

– Cuidado, pai, um cachorro!

O motorista desvia do amigo fiel, incontinenti, mas se fosse um gato-véio...

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Final alternativo (para maiores de 18 anos):

– Cuidado, pai, um cachorro!

O motorista desvia do amigo fiel, incontinenti, mas se fosse um gato-véio...

– O senhor o mataria, pai?

– Feche os ouvidos, filha. Essa resposta falarei baixinho, só para sua mãe ouvir.

– Tá, pai!

E, sussurrando:

– Se fosse um gato-véio eu...!

– Bicho sem-vergonha!

– Eu ou o gato-véio?

Juazeiro do Norte-CE, 26 de outubro de 2010.

10h51min

[1] Triste.

[2] Frágeis, leves.

[3] Alegrou

[4] Nojo, repulsa, ojeriza.

[5] Desejosos.

[6] Brilho refletido.

[7] Não notados, não percebidos.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 01/02/2012
Reeditado em 25/02/2012
Código do texto: T3474705
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