DDD - Diário de Derrotas [20]

07h00m

Engraçado... Tenho mais meia hora pra dormir programada no despertador e acordei sozinho.

07h45m

O bom humor que me acometeu ao acordar sem sono algum e de bom humor já foi pro ralo. O engraçado é que qualquer um dessa casa tem todas as 24 horas do dia à disposição para tomar banho, e o miserável resolveu entrar no chuveiro na hora que EU PRECISO tomar banho pra ir trabalhar. E já está há mais de 10 minutos lá.

07h50m

- Dá pra deixar sua punheta pra mais tarde? Preciso tomar banho pra ir trabalhar...

08h23m

Não é legal quando o último banco vago de um ônibus/metrô/(que seja) é ocupado pela pessoa que te precedeu no embarque? Eu só não vou reclamar muito porque foi por muito pouco que não perdi essa lotação - tive que atravessar no farol verde correndo e tomar buzinada e tudo. E não está de todo o mal aqui na frente, nesse lugarzinho atrás do motorista onde há uma cadeira retrátil e um espaço para a cadeira de rodas.

08h35m

Estou fazendo o possível para não respirar.

08h36m

Depois que a velha que estava sentada no banco retrátil se levantou pra descer eu tomei o lugar dela, mas não sentei. Ficar em pé ocupa menos espaço, e sentar ali significa ficar de frente pro ventre de alguém que nem pode proporcionar uma visão tão bela assim, afinal. O problema é que estou de frente para uma mulher de quatrocentos quilos, que usa boné e tem um bigodinho preto do lado esquerdo e um cavanhaquezinho do lado direito; por mim tudo bem ela gostar de chupar buceta, se vestir feito um caminhoneiro e não ter muitas afinidades com prestobarba ou espelho, mas precisava não tomar banho? Precisava mesmo sair com toda uma circunferência de hemisfério cheirando azedo? Hein?

08h40m

Agora estou um pouco melhor. O cara que estava do meu lado percebeu a minha situação (debruçado no braço com o pescoço virado pra frente, onde acabara de abrir a janela, com o ser humano roçando o baixo ventre protuberante no meu baixo ventre com os sacolejos do bólido e etc.) e saiu de onde estava; eu peguei o lugar dele e olhei o espaço onde antes estivera: minúsculo. E a caminhoneira não parava de olhar pra minha cara, talvez um tanto quanto ofendida com a minha abrupta troca de lugar.

08h47m

Bom, fui o último a descer da lotação. A penúltima pessoa foi a caminhoneira, que me deu a impressão de estar me esperando na hora que saí.

Pra acabar com a minha paranóia e com a sensação de sujeira na alma ao imaginar uma relação íntima com tamanha criatura, andei a passadas largas em direção à escada rolante. Sem olhar pra trás.

08h49m

O problema é que mais duzentas pessoas também caminharam em direção à escada rolante. Adivinha quem está um degrau abaixo, roçando a pança nos meus calcanhares?

08h53m

Estou diante de uma mocinha que está com um crachá de "treinamento", e ela está procurando meu RG numa série de gavetas com milhares de RGs. Ela é simpática e bonitinha, mas antes de eu pensar em mais adjetivos ela estende o meu documento novinho em folha e com uma foto decente.

08h54m

No Poupa Tempo os corredores são chamados de "ruas"; o balcão onde fiz a retirada do meu RG é a Rua B; a entrada mais próxima de quem vem do Metrô é a da Rua A; a criatura endomorfa está parada diante da entrada da Rua B; está olhando pra minha cara; o celular dela toca e ela se distrai; eu aproveito o ensejo para embicar na Rua A e sair em disparada.

"Não é possível que essa merda esteja me seguindo", penso com meus botões.

08h57m

Estou em uma fila próxima às catracas do trem, esperando os parasitas que estão na minha frente carregarem seus Bilhetes para que eu possa fazer o mesmo e tomar meu rumo. E um pouco além das catracas, no muro que cerca a rampa que desce do Poupa Tempo, está a gordona, me olhando.

09h02

Já munido do Bilhete devidamente recarregado, atravesso as catracas em passo rápido e subo as escadas rolantes correndo, fugindo de uma psicopata bigoduda de seiscentos quilos. Para minha infelicidade, o trem tinha acabado de fechar as portas assim que pus o pé na plataforma.

09h05m

Adivinha?

09h05m

VÉI......

09h06m

Agora a porra parece que ficou séria: a cidadã está do outro lado do muro com o queixo arrimado no cotovelo e me encarando de forma estranhamente bovina. Mil coisas passam pela minha cabeça, como nossas bocas se encontrando num beijo cheio de saliva com gosto de merda mole ou então ela me empurrando na frente do trem. Contudo, vou além das elucubrações sobre os porquês de tal perseguição e tiro uma foto na cara larga da criatura e entro correndo no trem.

Adrenalina demais pra quem está pouco mais de duas horas acordado.

09h45m

Resolvi vir na minha agência bancária, na Praça República, pra mendigar um aumento no limite do meu cartão de crédito. Ambos - tanto o banco como eu - sabemos que eu não sou flor que se cheire tendo dinheiro disponível pra gastar, mas eu preciso dessa merda pra comprar uma câmera que dê pra usar durante a faculdade inteira, sabe?

Como ainda faltam 15 minutos pra abrir e eu odeio ficar em fila matutina de banco com o pessoal que esqueceu de comparecer às intimações do cemitério, estou queimando a língua num pingado que mesmo depois de quatro sachês de açúcar não deixa de ser amargo e sentindo pontadas no estômago graças a um pão na chapa meio esquisito. Paciência.

10h12m

Esse foi o rapaz que me atendeu da última vez que vim aqui, com o braço engessado e tudo, e ele deve ser tipo o funcionário mais antigo - ou simplesmente o mais inteligente -, porque todo mundo, de dez em dez segundos, interrompe o que ele está tentando me falar; coisa que faz com que minha paciência vá definhando gradativamente e tal.

10h15m

Agora ele está me dizendo que o limite que eu quero não é compatível com o meu salário.

- Porque o limite só pode ser, no máximo, até a metade do salário.

- Engraçado que tenho amigos que têm conta em outros bancos e todos têm o dobro de limite do que estou pedindo... E todos ganham menos do que eu.

- É!? Que estranho...

- E aí? É com você que eu cancelo a conta?

- Não... Vou ver o que posso fazer aqui.

Aí ele finge que está tentando fazer alguma coisa por mim. Me diz um valor que é pouco mais da metade do que eu pedi. E é pouco mais que o meu salário também. Daria pro gasto, mas não o suficiente - não com uma câmera decente custando de mil e quinhentos em diante. Mais as lentes. Mais as pilhas, tripé, flashes. Mais as mochilinhas, que a mais vagabunda custa em torno de cento e cinqüenta reais e todas as outras coisas que eu desconheço e que devem custar o olho da cara... Bom, e do cu também, em última análise.

11h30m

Estou no escritório, e a novidade de hoje é que somente o meu perfil de usuário resolveu dar pau, o que significa que ficarei sem Outlook e sem internet a perder de vista. As coisas que tenho que fazer utilizando tais ferramentas tem que estar impreterivelmente prontas até às 13h.

Tudo o que eu posso falar é que você não deve jamais deixar o universo saber que você acordou de bom humor.

12h00m

- Você tá bem, nego?

- Tô sim... Querendo morrer um pouquinho...

- Não fala isso, a vida é bela!

- Ah é, é!? Tô sabendo disso não...

- KKKKK palhaço! O que você tem? Logo vi pela sua voz que tem coisa errada...

- Ah, meu computador resolveu dar pau, tô usando um outro aqui...

- Vish.

- É, e não tem nada gravado nos sites que uso, e quando tenho que fazer as coisas na planilha, tenho que abrir no meu, aí fico com a bunda pra lá e pra cá entre uma máquina e outra, atendendo os dois telefones e etc.

- KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK

13h10m

Com tudo resolvido em tempo - inclusive o conserto da minha máquina - eu desço as escadas pra ir almoçar.

20h50m

Tudo o que eu fiz durante esse ínterim foi me entreter com a criação e fomento de uma planilha que foi finalizada com 325 linhas x 12 colunas, com todos seus 3900 retângulozinhos preenchidos com nomes, CNPJS, datas e valores - todos distintos uns dos outros. Tudo isso graças a uma enchente no prédio (!) há duas semanas que fodeu com a intranet.

21h00m

Já estou fora do escritório. E o pior de tudo é pensar que esqueci de inserir uma coluna e que amanhã terei de criá-la e inserir a chatice dos dados que a ela pertencem.

23h00m

Consegui chegar em casa, depois de comer um lanche de 30cm no Subway, de pegar ônibus errado e de chafurdar o pé na lama e de também discutir com o cadeado do portão que não quis fechar e também depois de ver uma silhueta perto da escada da minha avó e de dar boa noite e depois olhar de novo e ver que não tinha ninguém.

23h47m

Meus olhos ardem tanto que deve dar pra acender um cigarro neles.

23h49m

O ponto alto do meu dia foi ter conseguido fazer 193,691 pontos no Block'd.

31/01/2012

POST SCRIPTUM

Este texto foi corrigido por três vezes depois de publicado aqui.

01/02/2012 - 00h03m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 01/02/2012
Reeditado em 01/02/2012
Código do texto: T3473552
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