OS POBRES DE PARIS

O jeito cortes e a amabilidade do povo francês são, de alguma forma, um ranço hereditário que obrigatoriamente é cumprido ainda hoje entre todos. Este legado vem lá da idade média onde o mais rústico camponês estava envolvido nestes valores como num cerimonial ligado à própria existência.

Resolvi conferir estas coisas.

Sobrou uma grana que o filho de uma puta leão não conseguiu afanar de mim, e dei um pulinho até Paris para visitar minha filha. Foram 12 lindos e maravilhosos dias por conta de conhecer e me embebedar com as maravilhas de lá.

Se você ainda não conhece Paris, na sua inocência, imagina de imediato que a droga e a mendicância não existem por lá. Ledo engano. Aos montes, carcomidos, feios e desfigurados pelo álcool que consomem, lá estão eles ocupando bancos de praças, entradas dos metrôs, esquinas movimentadas ou sem movimento, mas sempre rogando misericórdia por algumas moedas. A caridade os veste de pesados sobretudos que os aquece e os protege das intempéries rigorosas européias.

Estes mendigos já fazem parte do cenário bucólico da cidade.

Eles são pobres, mas não perderam a civilidade.

Perto de onde fiquei, bem ao sol nascer, indo a boulangerie comprar o baguette para o café matinal, encontrava sempre o mesmo mendigo e seu cão, sentado recostado na parede do prédio.

Olhar perdido, avermelhado e sonolento, rosto embrutecido pelos sulcos de suas rugas, chapéu escondendo seus brancos cabelos em desarranjo, uma das mãos afagando o cachorro e outra, rude e calejada estendida, semi aberta, pedindo sempre a cada transeunte uma moeda, ou qualquer coisa. Mas antes da súplica, numa voz rouca, de quase duas oitavas abaixo da tonalidade normal, como que num canto gregoriano dizia:

- Bonjour madame, bonjour monsier.

Ao receber a dádiva completava na mesma cantilena:

- merci pour la gentillesse.

Invariavelmente, todos os dias, eu despertava e era impelido a ir até a boulangerie, não pela necessidade da baguette, e sim para apreciar aquela figura rústica e seu cachorro. Para mim aquilo era uma pintura e seu rogar era música gregoriana. Embebia-me de prazer ao me permitir alguns minutos apreciando a cena. Cheguei a investir nele algumas moedas só para ouvi-lo.

Certa manhã, a chuva fina, ordinária, sem trégua, castigava impertinente o aventureiro que perambulava pelas ruas. Peguei um guarda-chuva e desci para o costumeiro passeio. Enquanto subia pela calçada molhada e escorregadia pensava um pouco triste, que com certeza não iria encontrar o mendigo. Ele estaria em qualquer lugar coberto livre da chuva menos ali. Mas fui, no meu caminhar ligeiro, quase desmotivado com destino a boulangerie.

A chuva continuava severa caindo.

Quando alcancei a esquina, lá mais adiante vi feliz que o mendigo estava no mesmo local sentado encostado na parede. Apurei melhor minha visão e notei que ele estava com um guarda chuva. Imaginei confortado que ele estivesse protegido da chuva.

Fui chegando e o que vi foi para mim uma grande lição de amabilidade, cortesia e afabilidade.

Ele, com seu roto chapéu preto, encharcando-se, com seu rosto molhado, impassível educadamente rogava por caridade e do seu lado, protegido da impertinente chuva, o cachorro todo encolhido, recostado a seu colo desfrutava sozinho do conforto do guarda chuva.

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 31/01/2012
Código do texto: T3471368
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