SORTE É PARA QUEM TEM
Sorte, --- dizia o Militão, --- não é para quem quer, mas para quem felizmente nasceu com ela. Falava elevando as mãos ao alto, como a cobrar para si igual privilégio da Providência.
E com esse exercício vulgar de filosofia existencial, ele justificava a enorme e ilógica capacidade do Emílio acertar amiúde os jogos e as rifas das quermesses paroquiais. Parecia algo arranjado. Mas não. A inviolabilidade das cartelas era certificada rigorosamente, eximindo-as de criativas fraudes. E o bingo? Ora, o bingo tinha suas pedras cuidadosamente examinadas antes, e cantado abertamente, então... era mesmo infalível a sorte do Emílio.
Ainda dirão os céticos: "um homem desses teria as loterias a seus pés!"
A bem da verdade e da sua segurança, não constava nenhum grande prêmio lotérico em suas conquistas, sabendo-se lá, por humildade do desapego ou timidez da discrição, não se aventurava em busca da glória maior. Aliás, bem resolvido na vida, encontrava-se de tudo à sua volta para satisfazer a singela pretensão. Logo...
Sendo banais e corriqueiros os prêmios, a fama se espalhara a ponto dos habituais freqüentadores das quermesses se desmancharem em sussurros quando da sua presença, ouvindo-os proferir lamúrias e frustrações. Para todos os efeitos ali estava um Gastão*, homem a quem a sorte aninhara a seus pés qual cadelinha fiel e obediente, pronta a satisfazer-lhe os caprichos da vida --- imaginavam.
Mas Emílio nunca quis atravessar o Rubicão. A sorte estava lançada apenas ali, na alçada comezinha da vida, nada de poderes que isolam e corrompem a simplicidade humana tal a sua, um homem a quem uma pescaria de piaus elevava-o a indizível satisfação. Conheci-o por volta de 1965, e até hoje folga-me tê-lo como amigo.
Entretanto, --- esclareço logo, --- não ouso pedir-lhe um palpite para jogar; assim, resta-me pôr as mãos para o céu, a exemplo do Militão, e esperar. Quem sabe?
*Gastão – personagem de quadrinhos, --- O Pato Donald, --- dotado de invejável sorte.