_Quer-me Zé

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Quermezé era homem feito. Pai de duas meninas – uma até mocinha –, não bebia nem fumava. Mas o danado era viciado em vestibular.

Época de inscrição era motivo de festa. Se o caso é exagerar, os festejos depois das vitórias da seleção brasileira em copa do mundo perdiam era feio! O homem comemorava abertura de vestibular era com água nos beiços! O cabra da gota serena lia os editais, comprava os jornais pra confirmar datas lidas na internet – era a solene, íntima, intensa e silenciosa celebração da perspectiva do novo pleito, da nova eleição personalíssima existente na mística de todo concurso...

Se o processo seletivo estaria eivado[1] pela ação humana – isso era o de menos! Pra ele, o importante era estar lá, bandeirinha na mão, sentadinho e esperando a hora da sirene a informar: “Pronto, candidatos, podem começar!” – signo decodificado. Era o início da glória. E assim ele seguia, ritualmente, todos os passos até o dia da prova.

As fotos datadas deixaram de ser condição necessária e suficiente para as inscrições; mesmo assim, Quermezé identificava cada uma delas como forma de cotejar[2] a evolução que o tempo nele perpetrava[3]. Sentia as irrefragáveis[4] marcas dos dias e gozava do privilégio de ainda não possuir nenhuma mecha de cabelo branco.

Inscrição à mão. Prova. Gabarito. Recursos interpostos – sempre há. Aprovação.

O mardito, em muitos dos vestibulares, fazia a matrícula e desaparecia; quem realmente precisava cursar perdia a vaga, carecendo de perseverança, caridade e mais clareza das ideias.

Quermezé sairia nos jornais. Entraria para os anais[5] doutra Instituição de Ensino Superior, Curso de Direito.

E a placa de formatura que nunca saía? Será que dessa vez o bicho ia até o fim, concluindo a empreitada[6]?

Ih! Se a gente fosse contar quantos cursos Quermezé deixara a ver navios, a tabuada findaria, principalmente a aquela usada pra contar nos dedos, às escondidas, quando diante de perguntas simples que os amigos, as namoradas ou os pais delas nos obrigam efetuar, somando dois números entre zero e cem, coisa simples mesmo. Eita que já vi gente passar sufoco pra somar, por exemplo, 37 + 65 – esse tal de vai um é cruel demais da conta! E pra subtrair então. Nunca se sabe de cabeça donde pegar emprestado depois do tal de “sete pra quinze”. Esse negócio de número dá canseira... O Gustavo, amigo de infância do Jorge de Aquino, perdeu foi a namorada, a linda Sofia, porque errou a disgrama dos cálculos na hora de pagar a conta da pizzaria. Somou errado e o pai da moça pagou dez reais além do valor devido. O velho, já dentro do carro, talvez contando nos dedos, descobriu a gafe[7] do rapaz, fez a filha terminar as “bulinações” com o moço e ainda mandou o analfabeto ir pra casa à pé pra gastar a sola dos calços e compensar os dez contos deixados no comércio por descaso com os números.

Quermezé teria mesmo era que aprender a gostar de ler muito agora. E o cabra parecia ter tomado jeito e gosto pelas letras depois da aula inaugural da Faculdade. Firmara mesmo o propósito de ser doutor das Leis e andava lendo tanto que vivia cheio duns tal de latim e duns tal de francês que cheirava a esquisitice. Pelo latim, a impressão era a de encarnação de espírito morto no homem – o seu Moreira se arrepiava ao ouvir o discursar de Quermezé, nos finais de semana, conversando com os amigos; pelo francês, havia certa indecisão na postura da voz – o homem fazia uns bicos que não combinavam muito com os passos firmes do torrão nordestino. O sargento Manoel, amigo do pai de Quermezé, chegou a perguntar onde o menino tinha aprendido a falar de modo tão ameno...[8].

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Vixe, que o curso é bom mesmo! Tem umas palavras bonitas que ninguém entende, é verdade. E pra que entender se, afinal de contas, a Lei do doutor ajuda a gente? Ajuda é ajuda, ora – não tem dente pra se olhar! Animal dado não se cheira o sovaco!

Última vez que nos cruzamos pelas bandas do lugarzinho onde moro, Quermezé falou durante a prosa nuns tal de Vade mecum e erga omnes que me deixaram com uma pulguinha bem na ponta aqui do meu nariz. Será que o cidadão, de metido a conquistador, tinha dado agora pra “erguê homi”?! Esse negócio não me cheirou lá muito bem não. Confesso que carecia de investigar, mas meu amigo, gentilmente, deixou meu coração menos aflito depois da explicação rasteira que colocou todos os pingos nos jotas. Taí que o curso é bom mesmo! – pena que o Vade mecum não é erga omnes, ou seja, pra todo mundo. Ainda bem que eu estava era ausente no dia em que ele falou com o Jorginho sobre direito das coisas. Sei não, mas falar da coisa alheia não é lá muito bom não. Ora se me interessa saber o tamanho “das coisas” de ninguém! Cada um com o seu trambolho tipo chocalho, balançando, e o chicote que açoite quem merecer!

O que Quermezé não esperava encontrar era a pedra no caminho. Tinha um calo feito a molesta, bicho com mau cheiro de dar dó e dor de dedo. A peste era tão ranzinza que o encravado arroxeou na cabeça do dedão. Nome da peste, figurada de gente: Toinzé.

Acostumado a entrar em sala de aula e dela sair sem ter que dar explicações a nenhum professor universitário, Quermezé ficou agoniado com o tratamento do Toinzé. Se algum aluno demorasse a estar em sala, o doutor “devogado”, professor de Quermezé, ele mesmo, o Toinzé, metia era falta, mesmo o acadêmico presente. Eita correria da peste! A aula agora era rinha e seu aluno se avexe[9] que o cabresto é curto e a peia é molinha.

“Não dou presença em aluno que está fora de sala!” – Quermezé odiava ouvir isso, em todas as aulas, durante as chamadas de Toinzé. Parecia com as ladainhas da Comadre Penaforte tentando mais adeptos pra paróquia de Nossa Senhora das Graças. Chatas ou não, a velha até que conseguia congregar jovens desgarrados pela insistência; Quermezé, ao contrário, odiava estar ali...

Recordando que ninguém é perfeito, o professor era só doçura e elogios com as alunas. Se as pestes eram devotas ou beatas; se eram puritanas ou desavergonhadas – e todo mundo sabia da vida de todo mundo na faculdade – que diferença fazia! O Santo das benditas alunas sempre era o preferido do mestre! O homem, o “Dr. devogado” gostava mesmo era de saias e vestidos! Eram dois pesos e desmedidos elogios pra elas. Pra nós, couro curto de bode, curado pelo berro dos inocentes ao Sol do meio dia. Ah um saco de estopa pra vestir o Marcolino feito mulher! Queria era ver a reação do cabra quando visse rabo de saia novo dentro da sala!

“As meninas têm alguma dúvida?”

“Professor, e a usucapião[10]...”.

“Você é menina, meu filho?”

Quermezé fechava os olhos ao ouvir a resposta. Aquilo parecia jardim de infância, ou purgatório, ou templo das lamentações masculinas. O tio, todavia, tornara-se bravo e tinhoso[11] e os pimpolhos, futuros doutores, tinham que respeitar a equânime[12] “ortoridade”. O algoz[13], desumano e parcial tirano protagonizava lamentações que findariam só ao final da disciplina Das Coisas...

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Segunda-feira, uma das muitas do semestre. A primeira aula seria dele, Toinzé. Quermezé, única e exclusivamente por causa da presença na lista de chamada, chegou cedo. Sentado, espera o algoz.

Dez. vinte. Trinta minutos de espera e, finalmente, chega Toinzé, atrasado. Quermezé olha para o amigo à sua frente e comenta:

– Será que o danadão registrou o atraso no livro de ponto dos professores? Trinta minutos é muito tempo.

– Acho que não. Pergunto pra ele?

– Você é doido, rapaz! Entretanto, ponha tudo nos autos.

Crato-CE, 7 de março de 2008.

16h28min

[1] Contaminado

[2] Comparar, confrontar

[3] Praticava

[4] Irrecusáveis, indiscutíveis

[5] Publicações periódicas. [Figurado] História.

[6] Obra que se faz segundo determinadas condições por um preço previamente estipulado. Trabalho ajustado em globo (e não feito a jornal); tarefa. [Figurado] À pressa, sem esmero.

[7] (francês gaffe) s. f. Dito ou comportamento irrefletido. Deslize, inconveniência. Engano por lapso ou negligência. Erro.

[8] Suave, que agrada e deleita.

[9] Aflija, atormente

[10] (latim usucapio, -onis) s. f. ou m.[Jurídico, Jurisprudência] Modo de adquirir propriedade, pela posse pacífica durante certo tempo.

[11] Nojento, repelente, O diabo.

[12] (latim aequanimis, -e, de espírito igual, moderado, calmo)

[13] Carrasco

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 30/01/2012
Reeditado em 24/02/2012
Código do texto: T3470842
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