O Voo do Pombo
O bicho está pendurado de cabeça para baixo, preso pelos pés à fiação que está ligada a um dos postes de energia elétrica. A partida de futebol das crianças, no meio da rua, é interrompida. O pombo se mexe na tentativa de escapar. Agita as asas. Para. Agita novamente. Sobre a plumagem cinza um esforço que não vence o embaraço. A cabeça está curva, sem vigor para erguer o corpo. Olhos arregalados. Embora pareçam sem expressão, vê-se o mais puro desejo de liberdade, sem saber como, nem quando, por que, onde, se será Deus ou a ciência que o libertará. Pequenas pedras negras, coloridas ao redor; parecem maiores que seu crânio e seus pés de pássaro que perderam o céu, ou, torcidos, como se nunca o houvesse tido.
O ruflar das asas não rompe a trama que o prende, bem fabricada, a ave não produz fios que a privem da liberdade, não dá nome para o que a submete, não possui aparelhos para quantificar a dureza de sua prisão, estatísticas, taxas de amostragem. Fica imóvel. Na imobilidade dos que se acovardam pela tirania da violência que aprisiona sem grades, a estrutura previamente calculada para proporcionar equívocos. Nem as forças do céu ou do inferno interferem na luta do pombo.
Não há como alcançá-lo, os meninos continuam agitados, apontam e correm de um lado para o outro. Ele permanece parado, como se houvesse desistido. As crianças abandonam a inquietação, está fadado a morrer, não há como ajudar. Não se mexe, o pescoço e a cabeça formam um “S”, olhos, agora, verdadeiramente sem expressão... À espera... Sem saber se da morte ou da possibilidade de sobreviver. Viverá ferido? Terá na sua cara o dedo apontado dizendo: Foste pombo aprisionado, aqui não há para que possas comer, estás predestinado à amargura, com teu barulho esquisito, a tua feiura, o teu cheiro horrível de praça da cidade poluída onde comes as migalhas que te dão.
Os olhos estão arregalados, o corpo contorcido. A posição desconfortável incomoda a quem vê, parece o profundo desespero inexpressivo, forma sem manifestação, a revolta que não grita, espera. A morte ou a fuga é o que levará o observador a avaliar a paciência do pombo como idiotice ou sabedoria, mas no exato instante do sofrimento não é possível mensurar. De repente, no silêncio, quando não mais se percebe, um barulho. Vrum!... Ele não está mais lá, escapou.