A boazuda da repartição
De súbito procuro algo que caiu de minhas mãos, ainda um pouco debilitado diante das circunstancias de uma manhã de intenso trabalho na repartição. Sou funcionário público, não que isso possa ser uma qualidade; mas, também não é um defeito. Sou dos que chega mais cedo; que abre a repartição dando um bom dia ao Senhor que guarda o prédio durante a noite; que adora o cafezinho da Dona Raimunda, a copeira responsável pela limpeza das salas; e que vez por outra dá uma cantada naquela “boazuda” da seção ao lado.
Na busca incessante pelo desconhecido, caço, esquadrinhando o chão próximo a minha mesa; eis que surpreendentemente alguém abre a porta; a primeira luz, percebo que se trata de uma mulher, até porque, meu sentido visual apurado deixa-me claro: um sapato alto de cor avermelhado, bico fino, com as pontas metálicas, reluzindo como um espelho. Só pode ser...
_ É ela. A mulher mais cobiçada da repartição. Pensei.
Dizem alguns que pelos sapatos que uma mulher usa, pode se avaliar tudo de sua personalidade. Mas, vamos mais adiante, ou melhor: acima; vestia uma longa saia preta, subindo na cintura, com um leve adereço a lhe alcançar os seios, uma blusa e sobre ela um casaco todo arrumado, o que dava ao ar um significado qualquer de realeza.
Levantei-me suave observando o curto espaço a que fui confinado ou achei por direito ocupar; enquanto, aquela beleza de espécie tomava conta do ambiente, possuindo cada centímetro como que tragando o vazio e apertando tudo mais contra a parede. Parece estranho para alguns, no entanto, para mim e em mim não incomoda. Ela, a mais formosa das princesas, olhos intensos com uma ternura sem igual, azulados, meio mel, talvez enegrecido, rasgassem como flecha meu peito já dilacerado pela doce fragrância que vinha do corpo escultural. Os cabelos amarelados e o perfume que provocava o desejo de avançar sobre seu corpo e falar baixinho em seu ouvido palavras deliciosas;
_ Seu perfume tem o sabor do vinho e o cheiro do paraíso, das virgens cantadas por Maomé, talvez tenhas vindo na nau de Camões. Novamente pensei naquele poema vivo.
Então, observo que ela se agacha devagar, procurado com volúpia e paixão aproxima-se do meu corpo; de imediato recolho minha alma doentia a mesa; ela agora olhando em meus olhos, junta aquele objeto metálico e amarelado, desbotada pelo uso.
_ Seu José, essa aliança por um acaso não é sua?
Aquela frase ecoa na alma; acordo do meu sonho de homem casado e caio na realidade.