UMA CRÔNICA
( reedição e comentários )
Faz um bom tempo que tenho deixado de escrever crônicas. Em 2008 e 2009 ainda as publiquei em um bom número. Acabo de reeditar uma e fiquei muito feliz ao ver que três jovens a comentaram e disseram da sua alegria em encontrar um bom texto. Sendo assim, resolvi então selecionar outras, pois o nosso espaço é dinâmico como a vida em geral, e há tantos novos escritores por aqui e saindo na capa existe a possibilidade de um texto selecionado entre os que julgo melhores poder ser apreciado e trazer sua contribuição a muitos que apenas iniciam, tantos jovens que neste espaço marcam a sua presença e a quem especialmente me dirijo.
Este que ora apresento teve boa receptividade num site português, o Luso Poemas, e pode mostrar que nossas realidades brasileiras são muito aparentadas com as da nossa pátria mãe Portugal, entre outras afinidades.
E trago o comentário do Hernique Pedro como forma de divulgar um escritor que ele sim, é um autor excepcional e revela nas suas palavras uma análise ampla de intelectual e de grande valor literário, na qual expõe as nossas raízes comuns de povos irmãos num belo momento poético.
Enviado por | Tópico |
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Henrique Pedro |
Publicado: 14/02/2009 09:38 Atualizado: 14/02/2009 09:39
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Re: DE CABO A RABO
Assim se escreve bem, em bom português!Fazendo uso correcto, e com encanto, do léxico, sobretudo retirando efeito agradabilíssimo da ruralidade que, inexoravelmente, já é passado.Ainda que esteja muito viva na nossa memória. Diga na nossa porque o paralelismo do estilo de vida e da linguagem com os usos e costumes da minha infância é marcante. Muito embora a distância seja assustadora. Fico imaginando que um pedaço de Trás-os-montes se translantou para o Brasil.Quando o rio da vida, transbordou do leito, e foi correndo de "cabo a rabo", como se fora o Tuela ou o Rabaçal, transfigurados em Amazonas. Um conto magistral.Parabéns.Aplaudo.
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DE CABO A RABO
Isso era no tempo do relho pendurado à parede.
Ele impunha mais respeito que muita autoridade e não deixava ninguém na casa esquecer quem era o senhor das decisões. Passando por ele os pirralhos sentiam um calafrio, além de umas lembranças daquele couro estalando nas canelas. Na verdade a sua função era mesmo mais decoratiava e intimidadora. Pois a grande autoridade doméstica impunha respeito só com o som das botas ou das tamancas troando no assoalho escovado com água e sabão. Ao ouvirem tal aviso, todos se punham em silêncio de sinal de alerta e à mesa não se ouvia um pio.
Era uma dessas tardes modorrentas quando o céu carregava de nuvens pretas e o mormaço sufocava. Seu Bento Rabel, tendo voltado mais cedo da sua costumeira ida à vila para fazer as compras da casa, vinha com sua charrete puxada pelo pangaré que, quase estrebuchando, parecia não ir mais muito longe. Avistando um arroio, resolveu o homem dar uma parada para se refrescar e deixar o animal beber água. Apeou e se pôs a desprender os arreios devagar. Quando terminou de soltar as presilhas o bicho deu um inesperado pinote e se foi rumo ao capinzal que ia terminar numa mata de árvores baixas mas cerrada. Correu na direção e só viu quando as patas traseiras sumiam pra dentro daquela cortina verde, compacta. Estacou, arriou o chapéu e passou a mão pela testa para secar o suor que pingava insistente. E agora? "A la pucha", o que teria feito ele disparar assim? Parecia assombração, tche! Agachou-se à beira da água que colheu com as mãos em concha, levando à boca com avidez. Era mesmo um calorão naquele novembro recém iniciado. Logo apareceriam as falhas nas pastagens e o gado iria perder peso. Bento esperava poder negociar algum antes disso, pra garantir o dinheiro com que comprar novas cabeças mais adiante. Viver daquelas terras com criação de gado não oferecia grande retorno, uma vez que pela pouca extensão dos campos que lhe restaram, tinha que se limitar a pouco mais de cem cabeças. Estava a pensar sobre isso, quando avistou seu cavalo emergir e trotar em sua direção. Tinha uma pata machucada e mancava visivelmente. E agora? Este momentâneo contratempo ocupou toda a sua atenção e fez com que esquecesse novamente as preocupações. Tomou providências para o problema surgido, como depois tomaria outras do dia a dia e assim evitava encarar a realidade de sua estância que logo teria que ser dividida entre os filhos e sabe Deus o que eles fariam pra sobreviver, e mais adiante, seus netos.
O futuro chegaria depressa, infelizmente, por essas bandas, e com ele o êxodo para outras regiões em busca de trabalho. Muitos jovens deixando pra trás sua terra de nascimento e ganhando a estrada. Muitos filhos de Bentos e Lourenços,
levando consigo as lembranças da infância, os ditos, o sotaque da campanha, conservado com afinco por muitos, pra não perder de todo a sua identidade. Meu marido era um desses que veio pra capital em busca de novos horizontes e se tornou professor na mesma escola que eu. E até o final da sua vida ainda conservava um modo de falar bastante peculiar da região de origem e com ele eu assimilaria muito da cultura da região da campanha tão diferente da nossa cultura marcada pela colonização alemã. Assim, sempre reparo no modo de falar do rapaz que trabalha como pedreiro e pintor de paredes. Aí lhe perguntei sobre isso e ele disse que um dia ainda vai voltar pra Cacequi, lá perto da fronteira com a Argentina e me conta coisas de sua família, sua infância, e eu o escutando lhe dou oportunidade de estar um pouco com seu passado recente, mas me enriqueço de aprender coisas deste Rio Grande quase desconhecido pra quem sempre viveu nesta região metropolitana.
A ocupação da terra tem sido uma questão dolorosa que não parece ter fim. E o rebenque das adversidades tem cantado no lombo desse povo que sobrevive sabe-se lá como, indo por aí em bandos ou se amontoando em espaços exíguos ao redor das cidades. Algo com que seu Bento não sonhou nem em seus piores prognósticos para o futuro. Uma manada sem tropeiro, uma excrescência nas estradas, uma pergunta que não se cala diante da indiferença de muitos, mas que está a pedir uma resposta urgente.