Válvulas
Em meio à tormenta de uma cidade grande, aquela tarde de outono estava apenas no início. No relógio da matriz marcava-se doze horas e dez minutos; nesse mesmo instante uma cena que esporadicamente acontecia, se passava dentro de um requintado e aconchegante restaurante italiano. Em meio à sofisticação do ambiente estavam reunidos os irmãos da família Silva... Silva que também esporadicamente era usado em suas assinaturas, afinal, um “S” maiúsculo com um ponto na frente poderia até sugerir um sobrenome, que como diriam os nobres, um pouco menos... Modesto.
O barulho insistente do vento lá fora, era abafado pela música suave que embalava a todos, e os filhos da família “S ponto” tentavam desenvolver uma conversa. O sorriso forçado e o olhar de satisfação eram como em um jogo de xadrez, peças fundamentais para o andamento do almoço em família. Manter a elegância e a postura era quase como se auto torturar; as cunhadas mal se olhavam e os irmãos quanto a diálogo, da mesma forma agiam. E assim o almoço ia se desenvolvendo, deformado, preguiçoso, saltando de assunto em assunto, cada um dentro da sua pequena humildade ia com muito carinho detalhando seus bens aos outros... Sem nenhuma pretensão, além é claro, se mostrar superior. Ficavam se olhando na tentativa de mais uma vez adiar o único e principal motivo que os reunia naquela tarde de outono em um almoço quase um pouco agradável.
João Marcelo sorriu:
- Então, quem vai ficar com mamãe? – Eu não posso; já respondia ele a própria pergunta.
Todos se calaram, afinal, ficar com a senhora Silva era o assunto pivô daquele quase um pouco agradável almoço em uma tarde de outono.
Odete, a filha mais velha, acendeu um cigarro enquanto Abelardo, o mais novo, lançava o olhar para Ana Flávia, sua esposa. Ela devolvia o olhar censurando qualquer tipo de manifestação por parte dele e ele, por sua vez, era aberto a qualquer censura imposta por ela. Odete afastou a cadeira, se levantou, e após exalar a fumaça do cigarro por todo o ambiente, calmamente irritada comentou:
- Um asilo! Conheço um que quase não batem. Todos mais uma vez se calaram. A senhora Silva era o assunto pivô daquele quase um pouco agradável almoço, no entanto não era parte ativa dentro do orçamento dos irmãos “S ponto”. Afinal, ter gastos era a última coisa que almejavam e sem contar, que para evitar futuros gastos é que a pequena casa no subúrbio onde a mãe morava fora vendida, sem consultá-la, é claro. Queriam evitar a nostalgia da mãe. Quando ela soubesse, já estaria sendo despejada. Seria menos brusco para uma senhora de setenta e dois anos saber de tudo somente quando as máquinas já estivessem terminando de botar abaixo as paredes da casa onde viveu com seu marido e criou com amor seus três filhos, mas isso seria irrelevante.
- Ora Odete... – comentava Abelardo com um sorriso de lado – Não existe algum asilo que batam, no entanto cobrem menos?
- O assunto não bater querido, é pagar. – comentou Fabiana, a esposa de João Marcelo. Fez-se o silêncio.
Já marcava treze horas e quinze minutos. Haviam se passado longos e cansativos sessenta e cinco minutos e nada de concreto fora decidido, cada um com sua particularidade já não via a hora de acabar com aqueles momentos tão desagradáveis. Restava ainda a sobremesa; este seria o último sacrifício do dia. Odete acendeu outro cigarro, com um leve movimento com as mãos dispensou a sobremesa, se levantou e com uma expressão totalmente blasée disse:
- É isso? Tenho que ir. O que decidirem me avise, não estou com disposição para perder tempo com essas coisinhas insignificantes. E se retirou da mesa deixando algumas notas debaixo da taça, era sua parte no almoço.
Enquanto o olhar de Odete se voltava para a mesa curiosa pela forma que todos a olhavam, seu ego lhe dava certeza que sua elegância para olhares. Na mesa os irmãos e cunhadas olhavam com sarcasmo fixamente a enorme mancha de mostarda na parte de trás do vestido de Odete. Nesse mesmo instante os olhares de sarcasmo de ambos se voltaram para o televisor 14 polegadas no suporte instalado no alto da porta. No mesmo momento algo dentro deles mudou. O que dizia na TV fez com que repensassem e olhassem por outro ângulo o assunto que os trouxe àquele lugar. Na TV o repórter dizia: “Ultimamente, a explosão de botijões de gás causada por válvulas automáticas, tem sido a principal causa de morte de idosos no país...”
Ambos se olharam mais uma vez, pagaram a conta, não deixaram gorjeta, assim como não se despediram. Seguiram cada um para sua direção, felizes enfim pelo término daquele momento, cada um é claro, com sua particularidade.
Na manhã seguinte o barulho da estrondosa campainha tirou à senhora Silva da cama. Ela tateou até a porta:
- Já irei abrir. – disse de dentro a senhora.
- A senhora é Dona Maria Nazareth da Silva?- Perguntou o jovem rapaz com alguns pacotes nas mãos.
- Sim, sou eu, do que se trata?
- Tenho uma, aliás, três encomendas para a senhora. - Para mim? O que seria rapaz? Flores?
- Não senhora... Válvulas automáticas de botijão de gás.