Jaratataca
Houve um tempo em que as crianças cresciam livres nos quintais das fazendas. A junção de primos, deixava que o “ faz de conta” reinasse, desde a copa das árvores até suas sombras. A farra era tamanha que as brincadeiras existentes não eram suficientes para entreter toda a molecada. E era aí que a imaginação fluía e eram criadas as brincadeiras mais legais. O inesperado, o imprevisto, o inusitado sempre estava apto a acontecer.
A brincadeira preferida da meninada era brincar de casinha. E antes da brincadeira começar, os mais velhos escolhiam entre os menores quem seriam seus filhos. A caçulinha da família era a preferida, todo mundo queria ser mãe dela.
Antes que a brincadeira começasse, quando a meninada estava toda empoleirada nos galhos de um pé de goiaba, as meninas maiores começaram a se desentender, pois todas queriam ser mãe da caçulinha. Para acalmar os ânimos, um dos primos interveio e pediu a pequena que escolhesse quem queria por mãe. Feita a escolha, uma das “mães enjeitadas” desistiu da brincadeira.
Desceu da goiabeira emburrada, praguejando contra as primas. Mal virou as costas, já estava pensando em voltar, quando viu entrando na clareira que ficava no meio do quintal um lindo animalzinho. Era todo rechonchudo, com um pelo negro que reluzia à luz do sol, contrastando com a lista branca que dividia-o em dois, desde a cabeça, perto dos olhos, até a ponta do rabo. Nunca havia vista um animal tão belo. Parecia um cachorrinho. Só que muito mais fofinho, e parecia ser muito mais limpo e cheiroso que os cães da fazenda.
A menina parou, agachou-se e ficou olhando a graciosidade do caminhar daquele pequeno ser que vinha da direção do mato, e atravessava a clareira todo senhor de si, balançando aquela calda imponente de duas cores. Tanto o branco alvíssimo, como se tivesse saído do banho naquele momento, como o negro reluzente, a hipnotizaram, e a expectadora, durante alguns segundos só conseguia mexer os músculos do pescoço, tentando repetir com a cabeça o movimento da calda do bichinho.
O animal concentrado em sua travessia, não percebeu a presença da menina. Não queria mais ser mãe da caçula, queria é ter um animalzinho que ninguém mais teria. As primas morreriam de inveja. Ela não tinha dúvidas, queria aquele bichinho para chamar de seu. Mas bastou que desse um passo a frente para que os instintos de defesa do pequeno mamífero detectassem sua presença. O bichinho levantou a cabeça, fitou-a nos olhos e deu uma assuntada mexendo com focinho. Pareceu ler os pensamentos de nossa amiga. Ao menor movimento da menina, começou a correr, e ela o seguiu. Dentre as muitas árvores do quintal, ele procurou refugio em um pé de siriguela. Como um gato, escalou seu tronco em um piscar de olhos e se misturou em meio às folhas tentando se esconder.
Quando a perseguidora chegou debaixo da árvore, o bichinho já estava lá no alto. Conhecia bem aqueles galhos. Os de baixo usava-os para virar coador e os de cima, subia lá nas “grimpas” atrás das suculentas seriguelas que por lá amadureciam. Com a destreza de uma moleca, em um instante já estava a distância de um braço do galho que servia de esconderijo. Mas bicho que é bicho não se dá por vencido. Ao perceber que o perigo se aproximava, começou a se distanciar e a procurar refúgio na ponta do galho. Sabia que não chegaria onde o animal estava por aquele caminho, pois o galho cada vez mais fino, poderia quebrar, e aquela altura, nem ela, nem o bicho sairiam dali ilesos. Olhou para o galho de baixo que era mais grosso e pulou de uma vez para ele. Quando se posicionava debaixo do bicho quase alcançando-o com a mão, sentiu algo molhado escorrendo cabeça abaixo , descendo pelas costas, através da roupa e ensopando-a toda. Quando olhou para cima, pode perceber a origem do líquido estranho. Desesperada, desceu da árvore em um pulo só. Correu em busca da mãe que cuidava de seus afazeres lá dentro da casa.
Num grito só, despejou tudo:
-Mainhêeee!!!
Tentou se aproximar, mas a mãe com uma das mãos a repeliu e com a outra apertou o nariz. Mandou a filha para o banheiro, enquanto foi confirmar suas suspeitas, no pé de seriguela.
De longe a mãe viu o branco e preto do bichinho tentando manter-se escondido entre o verde das folhas. Sua desconfiança se confirmou: era uma jaratataca, uma espécie de gambá do cerrado, que tem como arma de defesa a secreção de um líquido de odor bastante desagradável.
As roupas da menina foram jogadas fora, e a pobre tomou banho até ficar enrugada. Quando a meninada voltou do quintal, não soube a origem daquele cheiro insuportável que custou a sair da casa.
“ História real acontecida com minha mãe.”