Um leito de despedida
Acordo assustado, sem lembrar ao certo onde estou, a mente turva girando em exaustão. Chacoalho a cabeça levemente, tentando afastar um pouco do cansaço e da areia que parece preencher meus olhos. Tinha apagado com o rosto apoiado em meus braços, que repousam num leito de colchão duro e lençol branco. Um aparelho irritante apita em intervalos regulares, por mais que seja um som rítmico, agudo, como goteira em cano de aço, meu coração quase explode de júbilo cada vez que o ouço. Minhas costas e ombros doem, ardem, e estalam horrivelmente quando alongo-os após horas sentado arqueado numa cadeira sem encosto. Entre minhas duas mãos descansa protegida uma mãozinha delicada e inerte, alva como nuvem fofa no céu azul, dedos terminando em unhas mecanicamente aparadas por uma enfermeira indiferente.
A moça deitada respira pausadamente, faz pouco removeram a aparelhagem que o fazia por ela, seu corpo delgado atrofiou-se numa paródia, tornou-se pele e osso, para o rosto reluto olhar. Não pelos olhos fundos, pelos ossos saltando onde outrora rubras manchas marcavam as maças do rosto, parecendo a ponto de rasgar a fina camada de pele entre a pouca carne e o nada, pelo odor desagradável que exala qualquer moribundo; é algo muito mais doloroso.
O que me corrói a vontade é saber que quando erguer meus olhos não verei aquele sorriso que encantou-me, aquele olhar que alternava entreve o cínico e o sarcástico que derreteram-me, que não levarei outra bronca vindo daqueles lábios descolorados que mal se movem, muito menos receber um beijo quente deles, no máximo um gélido como a morte.
Ela solta outro hausto, enquanto absorvo seu sofrível arfar, não consigo deixar de lembrar de quando a conheci, de como fui feliz ao seu lado dum modo como nunca havia sido; de quando deram-lhe a notícia, de como abracei-a e senti suas lágrimas mornas cascatearem por meu peito ao ponto de ensopar a camiseta branca que usava, deixando-a transparente sobre o coração.
O primeiro beijo ainda lateja em meus lábios, o primeiro sorriso ainda perambula nítido em minha mente. A paixão desenfreada que seguiu nossos encontros iniciais, que atenuou-se sem sumir, tornando mera luxúria em carinho lascivo. Da amizade besta, regada a brincadeiras bobas e risadas divertidas veio o companheirismo sóbrio daqueles que se amam. Tudo num piscar de olhos, duma hora para outra perdi-me onde deveria estar.
Lógico que não me esqueço de quanto irritei-a da primeira vez, doía-me ver seu rosto franzido de raiva, junto com um olhar que percebia como eu sofria por ter-lhe feito mal, e denunciava sua vontade, mesmo imersa em ira, de confortar-me. Nunca o fez, em teimosa decisão, linda, deixava para acarinhar-me depois, com o assunto resolvido.
Quando acalento a mão ossuda recordo de passeios no parque, segurando-a quente e carnuda, enquanto fazia comentários jocosos sobre quem passava e ouvia-a rir deliciosamente; se conseguisse prender aquele riso em música teria criado a mais bela sinfonia. Nunca consegui compor, e faltam-me palavras para descrever esse tipo de sentimento, o que para quem escreve seria o mesmo que para um mestre de obras erguer um muro sem argamassa.
O aparelho bipa em intervalos mais breves, sei o que significa. Vejo seus olhos abrindo-se dolorosamente, imersa em narcóticos legalizados sua mente leva demorados e excruciantes momentos para me reconhecer. Dá-me um oi que parece um suspiro, tento sorrir e respondo o cumprimento, com tanta delicadeza como se fosse acariciar a asa de uma borboleta, afago seu testa e seu cocuruto nu; ela me pergunta, como toda vez em que desperta, há quanto tempo estou ali. Respondo que acabei de chegar, ainda que esteja sentado, vigiando-a ao seu lado há três dias, sem ao menos trocar de roupa, ela parece não notar e aperta com uma força que seria incapaz de esmagar uma formiga minha mão, sinto a levíssima pressão e a sorvo como se fosse a última coisa que iria sentir em vida.
Acaricio novamente sua fronte, com a leveza com que se segura um passarinho com a asa quebrada, sinto o suor quente que brota da pele fria, ela cerra as pálpebras gozando o toque, solta um leve suspiro e sua boca se torce num meio esgar que tenta emular um sorriso. Beijo seu rosto com um delicado toque de lábios, vejo-a tentar levantar uma mão para levá-la ao meu rosto. Deixo-a lutar com o peso dos dedos por um instante, desejando inutilmente que consiga fazê-lo, sei que não conseguirá, apoio sua mão na minha e trago-a até minha bochecha.
“Você precisa fazer a barba”, diz enquanto sinto o acre aroma daqueles que tem pouco tempo exalando de seu corpo, quero abraçá-la mas sei que não posso, quero chorar mas acabaria com ela, então apenas seguro sua mão sem forças em meu rosto e passo a mão por trás de sua orelha, como fazia para arrumar seus idos cabelos. Ouço-a dizer algo ininteligível, apenas aceno com a cabeça e torno a tocar-lhe com os lábios.
A maquininha, depois de um tempo, começa a lançar seus apitos irregularmente, de acordo com o que disse o senhor de jaleco branco e atitude indiferente isto não é um bom sinal; como se também soubesse me olha com olhos exaustos e buscando força não sei em que canto do corpo que míngua diz-me:
-Você tem um sorriso lindo, sempre amei ele.
Não sei se devo dizer algo, ela prossegue:
-Me dá mais um.
Luto contra todo meu ser tentando mostrá-lo. Cada músculo de meu rosto tenta impedir-me de desenhar um sorriso com os lábios e recheá-lo com dentes alvos, cada fibra minha pede que desabe em lágrimas, não sei ao certo como, talvez pela súplica em seus olhinhos cansados, mas acabo conseguindo abrir o maior sorriso que já dei.
Pouco depois, beijos seus lábios mortos.