O CHATO

O texto a seguir é extraído de "Crônicas da Vida Inteira", livro inédito sobre fatos de minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

O CHATO

Já fazia algum tempo que a mulher e os filhos vinham insistindo comigo pra que eu me modernizasse. De calças jeans, de camiseta e não sei com que mais, eu iria estar na moda, ia parecer mais jovem, mais pra frente etecétera e tal. Nem adiantou eu dar o contra: que as calças jeans, do jeito que eu as via apertadas na rapaziada por aí, e mais a camiseta iriam ressaltar ainda mais a minha protuberância abdominal, minha barriga, falando um português mais claro. Acabei acreditando neles, me empolguei e lá fui eu, num belo dia, à tal loja que eles me indicaram pra me pôr na moda.

— Ô moça, me veja aí uma camiseta que me sirva! — fui pedindo de entrada, após o bom-dia cordial. Eu estava radiante; iria parecer mais jovem.

— Qual é o número do senhor?

— Meu número? Da Cédula Identidade é: meia, sete, quatro, dois, seis...

— Não, não! Que número o senhor veste? — tentou a balconista corrigir-se meio sem-graça.

— Eu não visto números, moça. Eu pedi uma ca-mi-se-ta — soletrei num sorriso zombeteiro.

— Ih, é hoje!... exclamou ela já desgastada.

— É... é pra hoje sim — confirmei prontamente, fingindo não ter entendido a exclamação de revolta.

— O senhor é um chato! — explodiu ela.

— Chato? Eu? Ô moça, tu nem sabes o tanto que um chato incomoda! Dá uma...

— Qual é o número do manequim que o senhor veste? — interrompeu-me ela, pensando ter encontrado a pergunta correta pro chato.

— Ô moça, eu não sou vitrinista nem pretendo vestir manequim algum não. A roupa é pra mim mesmo — esclareci com calma.

— Ah, é demais — exclamou a moça em tom de derrota, pedindo socorro pra colega ao lado.

— Deixa, que eu atendo este senhor, Cida — interferiu a outra, que desde o início me olhava entre nervosa e divertida com o bate-boca que eu tinha aprontado.

— Não há necessidade, não, senhorita. Nós havemos de nos entender. Não é, Cida?

Sem dar-me ouvidos, a intrometida, em cujo crachá me informei chamar-se Vilma, depositou várias pilhas de camisetas sobre o balcão.

— Vamos ver qual número lhe serve — falou mais pra si mesma, olhando o meu tórax nem tão avantajado quanto a barriga. — Quarenta e seis — sentenciou e foi abrindo várias peças sobre o balcão após conferir os números na parte traseira do decote. — Bonitas, não!? — exclamou olhando-me com ares de vitória. — De qual o senhor mais se agradou? Todas elas são lindas, não é verdade?

— A senhorita é a dona da loja? — perguntei.

— Senhora. Sou casada. — corrigiu-me ela, mostrando a aliança na mão esquerda antes de responder-me com orgulho. — Sou a dona da loja, sim.

— Eu tinha visto sua aliança, mas achei-a tão menina ainda... — elogiei-a num galanteio nada usual em mim nem verdadeiro.

Havia camisetas de todas as cores: verde, amarelo, azul claro, azul escuro... Em todas elas, porém, o mesmo letreiro no peito, pintado ou bordado. E que baita letreiro! Ia de um lado a outro em letras garrafais de uns quinze centímetros de altura.

— Não tem branca? — perguntei.

— Ah, o senhor prefere branca? Temos sim. Mas estas são tão lindas!... — exclamou ela já de costas e a procurar nas prateleiras.

Num instante, as primeiras camisetas ficaram cobertas por outras brancas, como eu pedira, mas em todas elas, o mesmo letreiro enorme.

— Não tem sem estas letras? — perguntei em tom de desapontamento

— Oh, oh! O senhor não gosta? É isso que dá o charme!...

— Charme?

— É, senhor! É a nossa grife. Não é linda?

— Grife? Que bicho é esse? — perguntei fingindo inocência.

— Grife? Grife é... é a nossa marca. É o que dá o charme, que deixa moderno — explicou feliz por ter achado a definição de grife pro chato.

Sem dizer nada, eu esfreguei o polegar no indicador, e ela decodificou o gesto conforme o entendimento geral.

— Veja que barbada! Trinta e cinco reais — exclamou.

— Pô, meu! Que legal! Trinta e cinco beija-flor! — exclamei em juventudês pra parecer moderno, sem dar a mínima pra gramática. — 'Pera aí! É por semana, né? Por mês é fraco — perguntei e concluí no tom mais inocente do mundo.

— Como assim? — perguntou ela. — Não estou entendendo o senhor.

— É, ué! A pessoa recebe por mês ou por semana? — expliquei minha dúvida.

— Receber? O que é que o senhor quer receber? Não dá pra entender mesmo.

— Quem não 'tá entendendo nada agora sou eu. A senhora não acabou de me dizer que é trinta e cinco reais pra...?

— Ah, claro! — antecipou-se ela.

— ... usar a camiseta? — completei no mesmo tom e sem me interromper.

— O senhor é complicado, hein!? O senhor me perguntou quanto custa a camiseta, e eu lhe respondi que é trinta e cinco reais cada. Foi isso.

— Mas não foi esta a pergunta que eu lhe fiz quando fiz assim. — Tornei a esfregar o indicador no polegar. — Eu quis saber quanto é que a loja paga pra pessoa usar isso. Entendeu agora? E a senhora me diz, assim de cara enxuta, que o infeliz ainda tem que pagar pra sair por aí fazendo propaganda de sua loja?

— Mas...

— Não tem mas nem meio mas, senhora. Isso é o fim da picada! Quem é que vai pagar trinta e cinco reais pra botar um baita letreiro deste no peito e sair por aí feito mostruário ambulante da sua... Como é mesmo que a senhora disse? Ah... grife?

— O senhor é mesmo um desaforado! — exclamou ela com raiva, passando o braço no montão das camisetas espalhadas sobre o balcão e amontoando-as.

— Se falar a verdade virou desaforo, então eu quero ser o maior desaforado do mundo sim. Isso que a senhora está fazendo é uma indecência, um desacato à moral!

— Queira retirar-se, por favor, antes que eu chame a polícia! O senhor está prejudicando nossas vendas — bradou ela fora de si.

— Não, não vou prejudicar suas vendas, não senhora; o mundo está cheio de gente que não enxerga as coisas e que só quer estar na moda. E os espertalhões se enriquecem com isso. Tenha um bom dia, senhora!

Fui até a porta e voltei, apresentando meu cartão.

— Olha, quando a senhora tiver camisetas decentes, pra pessoas que não se importem com a moda, ligue-me, que eu virei comprar umas cinco ou seis; o tecido pareceu-me bom — Deixei o cartão sobre o balcão, prevendo que ela não o aceitaria, e saí.

Instantes depois, de volta pra casa, eu ia sacudindo a cabeça e jurando, pra minha velha camisa fora de moda, que nunca mais eu iria tentar ser moderno.

Quem quiser apreciar algumas de minhas telas acesse o blog atelierpacorrea.blogspot.com