RELIGAÇÕES 

                                            ..1..

 Quando saímos de casa, naquela manhã em Manaus, estávamos alertados de o que poderia acontecer, caso fôssemos àquela parte da cidade. 
 Queríamos conhecer as circunvizinhanças do centro, onde pudéssemos andar a pé, sem depender de taxis. E fomos, já sabendo das "consequências"; portanto, não foi surpresa quando aconteceu: um menino apontou na esquina e veio desde lá nos olhando, descendo lentamente em nossa direção, pela mesma calçada em que estávamos.
 Vou lhes dizer: aquele garoto era um garoto bonito, de treze, quatorze anos, no máximo. Moreno claro. Olhos cor de pirulito feito de açucar derretido e vendido em dia de festa de santa padroeira: olhos acaramelados. Cabelos amarronzados, corte quase à moda "reco", penteados talvez do jeito mais adequado à figura do personagem: repartidos rigorosamente do lado esquerdo, um discreto topetinho tombava para o direito (ou seria do direito para o esquerdo? Não me lembro mais; faz tanto tempo! - janeiro de 1981)... 
 Enfiei a mão no bolso, peguei algumas moedas para lhe entregar, pois sabia que seríamos  abordados - por aquela criança, ou por um adulto, ou por muitos que estivessem circulando naquelas ruas. 
 Quando saímos de casa, a certeza era a de que alguém nos pediria dinheiro.
 (...)
 ...A velha mania do preconcebido!
 Enfiei a mão no bolso, peguei algumas moedas, fi-las esfregarem-se umas às outras para separá-las mais ou menos por valor, tateei-as... e errei!
 Errei!...
 ...Não na contagem das moedas guardadas no fundo do bornal das calças, 
 ...mas, na avaliação precipitada das atitudes mútuas. 
 Errei!
 ...E com isso nem cheguei a completar o gesto cênico (ou cínico) de filantropo mal preparado: já bem próximo de nós o garoto encarou-nos, firme.      
 ...Não disse nada; 
 ...não pediu nada; 
 ...apenas sorriu!...
 ...Passou rente, sorrindo,  e seguiu, ladeirinha abaixo, deixando-nos na esteira do seu sorriso luminoso.
 Virei-me, acompanhando-o com os olhos. Sem que ele tivesse se voltado  e percebido a máscara de basbaque que abotoei no rosto, também sorri; sorriso  desapontado; cacoete esgarçado, chocho, desses que nos fazem lembrar das oportunidades que a vida nos dá para repensar certos conceitos.
 Aquele menino, que eu sabia pobre, tinha as roupas limpas; tinha dentes perfeitos; tinha faces brilhantes, que transmitiam alegria!
 ...Aquele menino, no entanto, não tinha mãos;  não tinha pernas!... Suas calças curtas deixavam à mostra dois cotocos de coxas. 
 Sem mãos, sem pernas...
 ...Mesmo assim sorria, sentado no seu carrinho feito de uma tábua só - carrinho de rolimã, igual ao que sempre desejei construir, em criança, e nunca o fiz.
 (...)
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 Trinta e dois anos já se passaram; e eu continuo  "ouvindo" aquela recomendação:
 " - Se vocês forem até aquele bairro, levem uns trocadinhos, pois encontrarão adultos e crianças pedindo esmolas. Lá moram muitos mutilados pela hanseníase".
 
(...)
 Trocadinhos...
 ...Sem mãos para poder sacá-las do bolso (acaso ali houvesse algumas moedinhas), o menino nos deu o melhor que nos podia dar: seu sorriso aberto e puro.   
 ...Ele foi o esmoler que eu pretendera ser, naquela manhã.
 (...)

  Carrinho de rolimã!... 
  ...Eu queria ter possuído um.

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                                            ..2..


 O bicho esfomeado rasgou o saco plástico que encontrou junto ao poste e bocava os restos de comida de almoço domingueiro.
 Se encontrava espinha de peixe na misturada, ele a sacudia com força, separando-a dos bolos de arroz que abocanhava sofrega, selvagemente. 
 Ônibus, caminhões, automóveis passavam, temperando a parca refeição com poeiras e fumaças.
 Ninguém se importava com aquilo. Comércio fechado, dos poucos humanos que andarilhavam por ali àquela hora é possível que nenhum tenha percebido o animal; e se o viram, pode-se imaginar que a mor parte torceu o nariz e mais à frente cuspiu o nojo - tal era o mau cheiro que rodeava o pacote revirado e o revirante que o remexia: lixo e animal fediam de causar náuseas!   

 (...)
 Estávamos justamente indo almoçar e sentimos pena dele.
 O restaurante ficava distante; não íamos chamá-lo até lá; quem sabe até não nos acompanharia... A fome deixa os seres transtornados.
 Na esquina, do outro lado da rua, vimos uma lanchonete aberta.
 Fomos até lá, pedimos qualquer coisa que pudesse matar a fome do coitadinho, o balconista a embrulhou e a levamos para o alimentar.
 (...)
 Quando chegamos mais perto, a impressão que nos deu era a de estarmos diante de um ser pré-histórico.
 Chamamo-lo, e quando nos olhou, a expressão era de medo... Parou de remexer os restos e por uns segundos fixou seus olhos em nós... Não direi apavorado, mas ele estava com medo muito grande.
 Mostramos o que lhe trouxéramos e ele, por ínfimo instante, pareceu desconfiado; depois pegou.
 (...)
 Tinha olhos claros, o homem. Olhos verdes.
 ...Via-se, em cada poro seu, um grão de sujeira. A pele branca amarelada, cansada, sem viço, envelhecida, queimada e requeimada por muitos sóis, castigada por muitas chuvas, desidratada, já não se descamaria, já não se renovaria através dos anos, se condições houvesse de se recuperar... Seria a marca eterna de um sofrimento, ainda que seus cabelos desgrenhados, engordurados, arrepiados e compridos pudessem, tratados, lhe dar aspecto mais jovial...
 ...Mas, não, não. Somos todos desiguais. Por causa disso, aquele será sempre, com certeza, um homem das cavernas, como tantos vivem mundo afora.
 (...)
 Apanhou a lata de refrigerante, o embrulho com dois sanduiches, guardou na sacola de pano que trazia a tiracolo,
 ...e continuou jogando longe as espinhas de peixe, comendo só o arroz embolotado.
 ...Deu-nos lição de economia.
 (...)
 ...(Isto foi em Niterói, há dois anos.)
           
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Jan, 25.2012